sábado, 31 de janeiro de 2009

Erros de agrônomos e de médicos

Richard Jakubaszko 
Muito conhecido por todos que labutam no agronegócio o aforismo que nos informa que “Os erros dos agrônomos a terra mostra e os erros dos médicos a terra esconde”. Essa é a história de um agrônomo que não errou, e consta que teria sido ele o criador da já famosa máxima. 

Pois o Dr. Jarbas, como era chamado, era conhecido, respeitado e admirado como produtor rural exemplar na sua região, no planalto central gaúcho. Plantava arroz, principalmente, e criava gado. O arroz era irrigado, nas áreas de várzea, para melhorar as pastagens para o gado. 

Um dia, já nos anos dourados da década dos sessenta, estava ele na lavoura quando chegou correndo esbaforido um empregado, e dava notícias de um acidente com a Dona Maria, esposa do Dr. Jarbas. 
Ele pegou a camioneta e foi “voando” até a sede da fazenda, que ficava a meia dúzia de quilômetros de onde estava. Encontrou a esposa queixando-se de fortíssimas dores, e já acomodada na cama pelas empregadas da casa. Havia escorregado na banheira e batera com as costas na borda da dita cuja. 

Chamaram o médico da família e este chegou rápido. Depois de um exame clínico na Dona Maria recomendou a remoção urgente para a capital, pois seria provável uma cirurgia de emergência. No município não havia ambulância para o transporte da acidentada. 
Dr. Jarbas ligou para Porto Alegre e mandou vir um avião, que alugou por telefone mesmo, afinal era homem de posses e não faria economia numa situação daquelas. 

Menos de quatro horas depois estavam na capital e Dona Maria foi hospitalizada e submetida a inúmeros exames. Naqueles tempos não havia modernidades como a tomografia computadorizada, e os médicos tinham de interpretar uma radiografia. 
Foi depois da leitura e análise de várias radiografias que o médico da capital, chamado de Dr. Cardoso, mas ainda muito jovem, determinou apenas a internação para observação da paciente. 

Alguns dias após a internação, e apesar dos remédios, as fortes dores de Dona Maria se mostravam renitentes em ir embora e seu quadro piorava. Passou a ter febre, enjôos, mal-estares diversos, e a pressão baixava repentinamente, ia “lá nos calcanhares”, colocando as enfermeiras em polvorosa. Chegaram a enfaixar o tórax de Dona Maria para que ela suportasse as dores. 

Jarbas, o marido e agrônomo, já estava desesperado, irritado e angustiado, e via o quadro clínico da patroa piorar dia a dia. Resolveu chamar um outro médico, professor da faculdade, e este após examinar a Dona Maria fez a ameaça: “Tem de operar agora, cada minuto perdido será um enorme perigo, e de graves prejuízos, ela está com 3 costelas trincadas e o baço rompeu-se, está com hemorragia e corre perigo até de vir a falecer, ou no mínimo ficar paraplégica”. 

Jarbas autorizou de imediato a delicada intervenção cirúrgica. 
A cirurgia durou mais de 8 horas, com a participação de uma grande equipe médica. Já no dia seguinte à operação o professor e médico avisou da possibilidade de Dona Maria ficar com problemas de locomoção, pois haviam demorado muito em tomar providências, os tecidos e músculos haviam inchado de tal maneira que pressionavam a coluna e outras costelas e dificultaram muito os delicados procedimentos cirúrgicos. 
Os dias se passaram, Dona Maria teve uma boa recuperação em relação às dores, mas não conseguia movimentar-se direito. 
Quase um mês depois teve alta, já com a certeza de que deveria fazer muita fisioterapia especializada para tentar recuperar movimentos de pernas, e teria de usar cadeira de rodas, provavelmente pelo resto da vida. 

Ao fechar a conta no hospital o Dr. Jarbas deu de encontro com um recibo do jovem médico Dr. Cardoso, que internara Dona Maria. Recibo de altíssimo valor, já para aquela época, digamos, em dinheiro de hoje, equivalentes a mais de dez mil dólares. 
Pois o Dr. Jarbas disse que só pagaria aquela despesa se fosse pessoalmente, não pagaria ali na boca do caixa. Quitou todas as outras dívidas, deduzidos os valores apresentados pelo jovem médico. Nesse meio tempo veio o aviso de que o Dr. Cardoso poderia receber o Dr. Jarbas. 

Depois de entrar na sala do jovem médico Dr. Jarbas sentou-se na cadeira, fez o cheque no valor apresentado, e nem regateou desconto, mas disse em alto e bom som que estava pagando porque não havia perguntado antes quanto custariam os serviços do médico. 
Acrescentou que, devido aos problemas causados pelo erro de diagnóstico, ele pagava aquele valor absurdo na expectativa de que o jovem médico comprasse, com aquele dinheiro, todos os livros de medicina possíveis, e fizesse muitos cursos suplementares. 

E enfatizou: “não sabes quase nada de medicina, ainda, meu jovem, e espero que com o que vieres a aprender nos livros que vais comprar não cometas novos erros com outras pessoas inocentes”. 
E lascou a famosa frase de que “os meus erros a terra mostra, os teus a terra esconde”. 
Foi assim. 

O texto acima foi extraído e adaptado do livro “Meu filho, um dia tudo isso será teu”, de minha autoria, a ser lançado nos próximos meses, e que trata de como transmitir vocação e aptidão para o trabalho na área rural, além de contar segredos de como fazer a transmissão de patrimônios aos herdeiros.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

O marketing rural está em crise e sem lideranças

Richard Jakubaszko 
Não poderia ser diferente, só se fala em crise no planeta. A grande mídia reflete isso nas más notícias publicadas, mal escritas e ideologizadas, a falta de rumo dos dirigentes do planeta. Mundo que foi liderado nos últimos 8 anos por um presidente americano que sai de cena mais sujo que pau de galinheiro. Espero que os novos ventos e os novos tempos tragam um norte aos dirigentes do planeta, e também aos dirigentes das associações e empresas, porque do jeito que está o baile a situação vai de mal a pior. 

Aqui no nosso mundinho do marketing rural brasileiro também ninguém se entende, falta liderança e estamos em crise. Faz algum tempo já que a associação do segmento, a ABMR&A – Associação Brasileira de Marketing Rural & Agronegócio, não representa um consenso do setor, e nem mesmo entre seus próprios associados. Basta ouvir um pouco o que rola de fofoca e diz-que-diz entre os membros da própria diretoria e dos associados, inclusive de ex-associados, tudo isto pela ausência de uma comunidade associativa, de falta de participação dos membros, de inexistência de liderança representativa. 

Os inúmeros comitês internos designados para debate e troca de informações não funcionam, não andam pra frente, e alguns nem de lado. A ABMR&A lamentavelmente, não funciona como associação e entidade da classe e do segmento e carece de um novo fôlego, de novas idéias, novas lideranças, novos rumos e novos objetivos, e assim seria melhor encerrar atividades. 

Não pretendia escrever aqui no blog sobre o que vem acontecendo com o marketing rural, a ABMR&A e seus membros, mas a tal da nova pesquisa do "Perfil Comportamental e Hábitos de Mídia do Produtor Rural Brasileiro - Edição 2009" (e os inúmeros desdobramentos que vem tomando) me deixou muito contrariado, diria mesmo irritado e desgostoso. 
Explico: participei da reunião em 19 de dezembro último, na sede da ABMR&A, para apresentação do instituto escolhido pela diretoria para efetuar a pesquisa, o IPSOS / MARPLAN, tradicional empresa do setor. Tradicional, porém embarcou numa canoa furada como veremos adiante. 
Tentei, já naquela reunião, manifestar minha opinião de que várias questões técnicas deveriam ser reavaliadas. Sugeri alterações no tamanho da amostra, tipos de produtores a serem entrevistados (com exclusão de suinocultores, avicultores e produtores de leite, por exemplo, pois não se pode pretender fazer projeções desses segmentos com 100 entrevistas no mercado nacional, daria um viés incalculável e obsceno), e ainda a definição de quais produtores deveriam ser entrevistados. 
Sugeri, inclusive, um novo filtro para produtores rurais, que inclua a posse de tratores, e não pelo tamanho da área, pois agricultor sem trator não é agricultor, mas fui informado que isso seria definido posteriormente. 
Fiquei quieto. 
Na seqüência (vai com trema, pois ainda não aderi ao "esquema" da nova ortografia...) da reunião tive a informação de que o custo total da nova pesquisa terá um valor cerca de 10% maior quando comparado ao custo da anterior, e, assim, desde que se mantenha o mesmo número de cotistas o valor de cada cota seria semelhante ao do estudo anterior. 
Porém, uma "novidade" apareceu no estudo, na metodologia de cobrança das cotas: a idéia de que as empresas de mídia deveriam pagar a mais pelo estudo, pois seriam "as maiores beneficiadas" com o acréscimo de faturamento advindo dos resultados da pesquisa. Retruquei que isso somente seria válido para as empresas que conquistem a liderança, e que de mais a mais o estudo não é exclusivamente de "hábitos de mídia", afora o fato de trazer outras informações com menor interesse ou de interesse indireto das empresas de mídia. 
Sugeri que os valores das cotas fossem como nos estudos anteriores, iguais para todos, com a diferença, se houvesse, apenas de quem é sócio ou não da ABMR&A. Desconversaram e pediram para aguardar, que a proposta viria nos próximos dias. 
Fiquei aguardando. 
Dias depois chegou ao meu e-mail uma proposta formal para a DBO Editores, e nosso valor de cota seria de R$ 50 mil pelo estudo. Verifiquei que dobrou o valor da cota em relação ao estudo anterior, o que não se justificaria, porque o valor total do estudo de mercado aumentou apenas 10%, como já vimos. 
Fui conversar com outras empresas cotistas, inclusive das empresas de mídia e agências, e aí descobri o que para minha concepção de bom senso é algo inacreditável: o valor da cota foi feito conforme a "cara e o bolso do freguês". 

Tem agência com cota de R$ 30 mil, e outra de até 50 mil, tem editora de revistas, como nós, com cota de R$ 50 mil e outras com valor de cota bem maior, e tem emissora de TV com cota de R$ 87 mil e outra com cota de R$ 180 mil!!! 
Entre as empresas cotistas, ainda não confirmei, mas parece existir o mesmo critério de "tamanho", definido sabe-se lá por quem e quando, mas fácil de identificar que foi feito por gente com pouca prática no marketing rural, que desconhece a prática do mercado de "trocar figurinhas" e informações. 

Não é difícil a gente constatar que esse estudo não será realizado, pelo menos da forma como está sendo "administrado e conduzido". 
Então, resolvi jogar a merreca na transparência e colocar um pouco de agitação do ventilador. Publico aqui no meu blog a minha contrariedade a respeito do problema apresentado, peço às lideranças do setor que decidam e reavaliem não apenas a questão da pesquisa, mas a continuidade da própria diretoria da ABMR&A. 
Acho até que já que se tornou moda, no Brasil e no mundo, pedir o impeachment de presidentes, portanto, minha sugestão ao conselho da ABMR&A: peçam o impeachment do atual presidente e de toda a atual diretoria, diretoria que já mudou diversas vezes, desde a eleição anterior, com a saída de diversos diretores, por puro descontentamento com o que se faz na ABMR&A atualmente. 
Não será novidade, quando ainda se chamava ABMR, nos anos 90, houve um impeachment e a associação sobreviveu e até mesmo voltou a crescer em importância. 
Cadê o conselho efetivo (composto pelos ex-presidentes) e o conselho consultivo de administração da ABMR&A, meus amigos e companheiros de luta pela divulgação do marketing rural há mais de 35 anos. 
Cadê os ex-presidentes da ABMR&A, como Doly Ribeiro Jr., Tejon Mejido, Eduardo Daher, Tereza Sanches, Nivaldo Carlucci, José Roberto Monteiro? 

Permitam-me a sugestão: não sou o mais velho entre vocês... mas sou o mais antigo no marketing rural, sou o decano da turma que está aí, já que o Guido Gatta resolveu aposentar-se. Não tive e nem tenho pretensões a cargo algum na ABMR&A, jamais me candidatei, e nem irei me candidatar, mas sempre fui um associado, em todas as empresas por onde trabalhei. Já vi também a ABMR&A passar por dificuldades no passado, mas jamais acompanhei um processo maluco como o atual, sem liderança, sem rumo, disparando decisões e critérios de interesses pessoais a torto e a direito. 

Entendo ainda que, se uma associação discrimina seus associados, para que justificar sua existência? 

Devemos encontrar uma solução, urgentemente, com ou sem impeachment, que não é uma proposta, apenas uma lembrança de que até isso pode ser pensado. 
Desde já coloco este blog à disposição de todos para um debate aberto, transparente, franco, para que possamos continuar a ter um marketing rural neste país. Esse é um dever e um direito de todo cidadão, e se fizéssemos assim em todas as pendengas deste nosso Brasil tenho a certeza de que teríamos um país melhor e mais justo. 
É só postar um comentário no espaço aí embaixo, clicando em "comentários" ou mandar um e-mail com sua resposta, prometo que publico na íntegra e dou resposta a cada comentário que vier a ser enviado. 
Coloque seu nome no texto se não tiver o gmail, caso contrário o comentário virá como "anônimo", e nesses casos não publico nada. 
A omissão é a pior atitude de cada cidadão que se diz consciente. Nenhum omisso tem o direito de criticar absolutamente nada, caso não participe.

ET. Esta minha atitude é de caráter pessoal e de minha exclusiva competência profissional, nada tem a ver com a DBO Editores Associados, onde exerço o cargo de editor e publisher da revista DBO Agrotecnologia. Publico este texto, inclusive, aqui no blog, que é um espaço entre amigos, com esta ressalva, a pedido da diretoria da empresa. Esclareço, adicionalmente, que não tenho nenhuma pendência ou diferença pessoal com qualquer um dos profissionais que atualmente estão na diretoria ou presidência da ABMR&A, tudo o que coloquei é o meu jeito caboclo e franco de ser e agir, talvez por isso muita gente goste de mim, e também pela mesma razão muita gente não queira me ver nem pintado de ouro. Como dizem alguns amigos, não sou polêmico, sou apenas mal compreendido...
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quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Escrevo o que não sou

Enviado por Bete Cervi, de Vila Velha, ES.

Escrevo o que não sou
* Rubem Alves



Há uma pergunta que, quando feita a um poeta ou escritor, dói mais que picada de escorpião. A mim, pessoalmente, nunca fizeram. Mas fizeram a amigos meus. "Ele é do jeito mesmo como ele escreve?" É uma pergunta nascida do amor: acharam bonitas as coisas que escrevi e agora estão curiosos para saber se me pareço com o que escrevo. Como disse, nunca me fizeram a pergunta, diretamente. Mas eu respondo. "Não, eu não sou igual ao que escrevo".
Sou um fingidor.
Quem disse isso, que o poeta é um fingidor, foi Fernando Pessoa: o poeta é um fingidor.
Finge tão completamente que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente.
Fingir é palavra feia. Sugere uma mentira, com o intuito de enganar. No mundo de Fernando Pessoa ela tem um outro sentido. Fingimento é aquilo que faz o ator no teatro: para representar ele tem de "fingir" sentimentos que não são dele. E finge tão completamente que sente, realmente, uma dor que não é dele, mas de um personagem fictício, ausente.

Assim é o poeta. Como pessoa comum, ele sofre. Essa pessoa sofredora não sabe escrever poemas. Ela só sabe sofrer. Mas nessa pessoa que sofre mora um outro, o poeta, o duplo, heterônimo. Esse poeta olha para si mesmo, sofredor, e "finge", deixa-se possuir por aquela dor que é dele como se fosse de um outro: "chega a fingir que é dor a dor que deveras sente". Sou um fingidor.
O que escrevo é melhor que eu. Finjo ser um outro. O texto é mais bonito que o escritor. Fernando Pessoa se espantava com isso. Ele tinha clara consciência de que ele era muito pequeno quando comparado com a sua obra. Num dos seus poemas ele diz o seguinte: Depois de escrever, leio... Por que escrevi isto? Onde fui buscar isto? De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Vinha-lhe então a suspeita de que aquilo que ele escrevia não era obra dele, mas de um outro: seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos? Contaram-me que ele, Fernando Pessoa, certa vez, aceitou encontrar-se com Cecília Meireles, e marcaram lugar, data e hora para o dito encontro. Cecília compareceu e esperou. Pessoa não foi e mandou, no seu lugar, um menino com uma desculpa esfarrapada. Esse incidente sempre me intrigou. Será que Pessoa era um grosseiro indelicado?
Depois, lendo o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, encontrei uma curta afirmação que esclareceu tudo: "Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver."
Ao marcar o encontro com Cecília, movido pela delicadeza ou entusiasmo, ele se esqueceu disso. Foi só na hora que lembrou. Cecília amava os seus poemas. Na ausência, certamente, fizera aquilo que todos fazem: imaginou que o poeta se parecia com os seus poemas. Agora, em algum hotel de Lisboa, ela se preparava para se encontrar com a beleza dos poemas na sua forma viva, verbo feito carne. A decepção seria muito grande. "Nunca pude admirar um poeta que me foi possível ver". Assim, para poupar Cecília da decepção, ele preferiu não aparecer.
Àqueles que fazem essa pergunta a meu respeito, que imaginam que eu possa ser parecido com o que escrevo, aconselho: "Não compareçam ao encontro. Fiquem com o texto." Não é mentira, não é falsidade: a poesia é sempre assim. A poesia não é uma expressão do ser do poeta. A poesia é uma expressão do não-ser do poeta. O que escrevo não é o que tenho; é o que me falta. Escrevo porque tenho sede e não tenho água. Sou pote. A poesia é água. O pote é um pedaço de não-ser cercado de argila por todos os lados, menos um. O pote é útil porque ele é um vazio que se pode carregar. Nesse vazio que não mata a sede de ninguém pode-se colher, na fonte, a água que mata a sede. Poeta é pote. Poesia é água. Pote não se parece com água. Poeta não se parece com poesia. O pote contém a água. No corpo do poeta estão as nascentes da poesia.
Escher, o desenhista mágico holandês, tem um desenho chamado "Poça de Lama": numa estrada encharcada pela chuva um caminhão deixou as marcas dos seu pneus, onde a água barrenta se empossou. Coisas feia e sujas, as marcas dos pneus de um caminhão, cheias de água barrenta: nenhum turista seria tolo de fotografar uma delas, quando há tantas coisas coloridas para serem fotografadas. Pois Escher desenhou uma delas. E o que ele viu é motivo de espanto: na superfície de lama suja, refletidas, as copas dos pinheiros contra o céu azul. Pensei que a poesia é isso: poça de lama onde se reflete algo que ela mesma não contém. A copa dos pinheiros contra o céu azul não está dentro da lama, não é parte do ser da lama. Apenas reflexo: mora no seu não-ser.
Pensei que assim é o poeta: poça de lama onde o céu se reflete.
Nietzsche, escrevendo sobre a poesia de Ésquilo, diz que ela "é apenas uma imagem luminosa de nuvens e céu refletida no lago negro da tristeza". E Fernando Pessoa, no poema daquele verso que todo mundo canta - Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena -, diz o seguinte: Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu. É nessa contradição: o céu se fazendo visível, refletido, na poça de lama, no lago negro da tristeza, no perigo e no abismo do mar. Não. Não escrevo o que sou. Escrevo o que não sou. Sou pedra. Escrevo pássaro. Sou tristeza. Escrevo alegria. A poesia é sempre o reverso das coisas. Não se trata de mentira. É que nós somos corpos dilacerados - "Oh! Pedaço arrancado de mim!" O corpo é o lugar onde moram as coisas amadas que nos foram tomadas, presença de ausências, daí a saudade, que é quando o corpo não está onde está...
O poeta escreve para invocar essa coisa ausente. Toda poesia é um ato de feitiçaria cujo objetivo é tornar presente e real aquilo que está ausente e não tem realidade. Enquanto pensava sobre essa crônica ouvi, por acaso, aquela balada que diz: "like a bridge over troubled waters" - "como uma ponte sobre águas revoltas...". Letra e música sempre me comoveram. Na liturgia do casamento do meu filho Sérgio com a Carla, liturgia que preparei, pedi ao Décio, cirurgião pianista, que tocasse essa canção: pois isso é o máximo que alguém pode ser para a pessoa amada: ponte sobre águas revoltas. Pensei, então, que eu sou "águas revoltas" (onde eu mesmo quase me afogo). O que escrevo é uma ponte de palavras que tento construir para atravessar o rio.
Assim, considero respondida a pergunta: não sou igual ao que escrevo. Guardem o conselho de Fernando Pessoa. É mais seguro não comparecer ao encontro.

"Ler é fazer amor com as palavras."

* Rubem Alves, poeta, escritor, professor, mineiro.