sexta-feira, 24 de abril de 2015

Avança agenda da privatização da água, no Brasil e no mundo.


Leandro Batista Pereira
Em meio à crise hídrica vivenciada em várias regiões do globo, como no Sudeste do Brasil, diversas propostas de privatização dos recursos hídricos têm avançado, nos últimos anos, geralmente, envolvendo grupos de investimentos transnacionais. O ponto central da agenda é passar a considerar a água como mais uma mera commodity, assim como tais grupos consideram os alimentos, em vez de um direito fundamental de todos os seres humanos.

No México, um escândalo revelado no ano passado proporciona uma visão pedagógica sobre o tema.
Em maio de 2014, o sítio israelense Globes, especializado em assuntos econômicos, noticiou que Natan Eshel, ex-assessor do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, havia construído a sua fortuna pessoal com um acordo entre o governo do México e a estatal de águas israelense Mekorot. Segundo o jornalista mexicano Alfredo Jalife-Rahme, a empresa havia sido expulsa da Argentina sob a acusação de promover um “apartheid da água” contra 4,5 milhões de palestinos nos territórios ocupados por Israel (La Jornada, 11/04/2015).


Eshel teria negociado com David Korenfeld Federman, que presidiu a Comissão Nacional de Água mexicana (Conagua) de 2012 até abril de 2014, quando renunciou devido a pressões por ter utilizado um helicóptero oficial para fins pessoais. Federman teria utilizado a sua influência na Conagua para favorecer o estabelecimento de contratos com a Mekorot, em um esquema de privatização de recursos hídricos do país.


Dentre as negociatas denunciadas pelo Globes, inclui-se um acordo firmado entre Eshel e a Conagua para que a Mekorot assumisse a purificação de fontes de água contaminadas no México. Como intermediário das negociações, Eshel teria arrecadado de 5% a 8% do valor do contrato assinado pelo órgão mexicano.

Outra iniciativa de Federman foi a apresentação do projeto da Lei Geral de Águas, na Câmara de Deputados, em fevereiro de 2014, a qual foi adequadamente batizada “Lei Korenfeld”. A proposta visava uma extensão a todo o país do modelo de privatização dos recursos hídricos que ele mesmo implementou no Estado do México, quando ocupou os cargos de secretário de Águas e Obras Públicas e presidente da Associação Nacional de Empresas de Água e Saneamento do México (ANEAS), de 2007 a 2012, antes de assumir a Conagua, já no governo de Enrique Peña Nieto.

O modelo implementado no Estado do México privilegia a construção de infraestrutura hídrica que, basicamente, privilegia quem paga pela água, promove a concessão de grandes obras hidráulicas no entorno das principais cidades e dá à Conagua o poder de conceder concessões prorrogáveis por até 60 anos para empresas interessadas (SinEmbargo, 6/04/2015).


Críticos do projeto de lei afirmam que ele tende a encarecer o acesso à água, afetando os segmentos mais pobres da população e colocando a soberania hídrica do país nas mãos da iniciativa privada. Além disso, a “Lei Korenfeld” ainda promove uma “criminalização” das pesquisas científicas, determinando em um dos seus artigos uma punição financeira a qualquer pessoa que realize estudos, monitoramento e tratamento dos recursos hídricos mexicanos sem autorização prévia da Conagua. Com isso, nenhum pesquisador universitário ou cidadão poderia, por exemplo, obter informações que questionassem os dados oficiais sem o consentimento do órgão.

O avanço de Wall Street sobre os recursos hídricos
O interesse dos grandes investidores internacionais está longe de restringir-se ao México. De fato, megabancos e grandes grupos de investimentos estão se dedicando a tais investimentos em uma escala sem precedentes, entre eles o Goldman Sachs, JP Morgan Chase, Citigroup, UBS, Deutsche Bank, Crédit Suisse, Macquarie Bank, Barclays Bank, Blackstone Group, Allianz e HSBC. O foco desses investidores tem sido a aquisição de terras com aquíferos, lagos, direitos sobre a exploração comercial de recursos hídricos e a participação em companhias de tecnologia engenharia hidráulica que atuam em âmbito global.


Já em 2008, dando a tônica da ofensiva global pela privatização da água, o Goldman Sachs afirmou que a água seria “o petróleo do século XXI”, assegurando que os investidores que se dedicassem a esse recurso natural teriam grandes lucros. Naquele ano, a indústria mundial da água já movimentava 425 bilhões de dólares em todo o planeta. Em uma conferência sobre “Os Cinco Maiores Riscos” daquele ano, o banco assegurou que uma estiagem de grandes proporções seria uma ameaça muito maior para a humanidade do século XXI do que uma queda na produção de alimentos ou de energia.


O Goldman Sachs tem um profundo conhecimento de causa, quando fala da aquisição de recursos hídricos por grupos privados: desde 2006, o megabanco se tornou um dos maiores investidores em infraestrutura no mundo, incluindo empreendimentos hídricos.

Outros grandes fundos de investimentos em recursos hídricos têm se formado nos últimos anos, entre os quais se destacam: Calvert Global Water Fund (CFWAX); Allianz RCM Global Water Fund (AWTAX); PFW Water Fund (PFWAX); Kinetics Water Infrastructure Advantaged Fund (KWIAX).

Além disso, foram criados diversos índices para investimentos relacionados a recursos hídricos: Crédit Suisse Water Index; HSBC Water, Waste, and Pollution Control Index; Merrill Lynch China Water Index; S&P Global Water Index; First Trust ISE Water Index Fund (FIW); International Securities Exchange’s ISE-B&S Water Index.

Igualmente, há conhecidas figuras internacionais entre os pioneiros dos investimentos em títulos de propriedade e licenças de exploração de recursos hídricos. Um exemplo é o ex-presidente dos EUA George H. W. Bush (1989-1993), que, em 2005, adquiriu 80 mil hectares de terras na região do Chaco Paraguaio, situados sobre o Aquífero Guarani e próximo à Tríplice Fronteira Argentina-Brasil-Paraguai. No ano seguinte, sua neta Jenna Bush ampliou a área em mais 40 mil hectares no ano seguinte, aprofundando a presença de uma das famílias mais ricas e influentes dos EUA no país vizinho.

Para colocar em perspectiva, o Aquífero Guarani é considerado o segundo maior aquífero do mundo (segundo a Wikipedia), com uma área total de 1,2 milhão de quilômetros quadrados. Possui um volume aproximado de 37.000 km³ de água e uma taxa de reposição de 166 km³ por ano. Estima-se que seja capaz de abastecer a população brasileira por 2500 anos e a população mundial por 200 anos, com base nas respectivas taxas atuais de consumo.

Por outro lado, uma ideia da junção dos interesses privados com a agenda geopolítica do Establishment estadunidense pode ser visto no recente anúncio feito pela empresa californiana Tetra Tech, de que obteve um contrato de um bilhão de dólares (o número é esse mesmo, 1 bilhão de dólares) da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), para a obtenção de dados sobre o consumo mundial de água, de modo a elaborar “estratégias para a gestão de recursos hídricos”, em um prazo de cinco anos. Conhecendo-se a trajetória intervencionista da USAID nos países em desenvolvimento, convém prestar muita atenção na nova iniciativa, denominada “Estratégia de Água e Desenvolvimento” (Water and Development Strategy).

No Brasil, “privatização branca” agrava crise hídrica
As experiências brasileiras de privatização da gestão, controle e distribuição da água têm provocado o encarecimento dos serviços e a destinação de grande parte dos valores arrecadados para o pagamento de acionistas das empresas responsáveis por tais serviços. O caso mais emblemático é o da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp).

Transformada em empresa de capital misto em 1994, com o argumento da obtenção de mais recursos para investir em abastecimento de água e tratamento de esgoto, a empresa teve 49,7% de suas ações vendidas a investidores brasileiros (25,5%) e estrangeiros (24,2%). E, embora o seu estatuto limite a concessão de lucros a acionistas a até 25% do lucro líquido anual da empresa, ela nunca realizou pagamentos inferiores a 26,1% desde que entrou na Bolsa de Valores, em 2002 (Jornalggn.com.br, 5/5/2014).

Além disso, estimativas baseadas nos dados divulgados pela empresa, em março de 2014, revelam quem, entre 2003 e 2013, aproximadamente um terço do lucro líquido total foi repassado aos acionistas. Trata-se de um montante da ordem de R$ 4,3 bilhões, o dobro do que a empresa investe por ano em saneamento básico. Entretanto, os índices de desperdício de água ainda beiram os 25% na atualidade, contrariando todas as metas da empresa de redução das perdas de água.

Para completar, a Sabesp conseguiu aprovar um reajuste tarifário de 13,8% para este ano, embora tenha anunciado uma redução de 55% nos investimentos para o tratamento de esgoto, alegando dificuldades financeiras em razão da recente estiagem que castiga São Paulo (O Estado de S. Paulo, 1/04/2015). Ainda assim, a empresa teve caixa suficiente para pagar um bônus de R$ 504 mil a cada um de seus sete diretores, como “prêmio pelo desempenho à frente da companhia” (noticias.uol.com.br, 14/04/2015).

Os casos brasileiro e mexicano são emblemáticos dos sérios problemas que podem advir da privatização da gestão, controle e distribuição da água. Resta saber se os governos nacionais, incluindo o brasileiro, poderão resistir a tal impulso, que pode colocar em risco o acesso de uma considerável parte da população mundial a esse recurso tão básico para a sobrevivência humana (como reconhecido pela própria Organização das Nações Unidas, em 2010).

Publicado originalmente no site Alerta em Rede: http://www.alerta.inf.br/avanca-agenda-da-privatizacao-da-agua-na-america-latina-e-no-mundo/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=avanca-agenda-da-privatizacao-da-agua-na-america-latina-e-no-mundo

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