Richard Jakubaszko
Foi um enorme e retumbante berro, dado como ordem imperativa. O desaforo veio lá do meio do avião e apesar do barulho das turbinas todos a bordo escutaram. Deu para entender algumas palavras, berradas isoladamente, como folgado!, malcriado!, espaçoso!, pára com isso!, e ainda o ameaçador vou meter a mão na sua cara! Foi um corre-corre nervoso das aeromoças e comissários dentro do avião, e a turma do deixa-disso logo conseguiu serenar os ânimos. Comentários posteriores esclareceram que a bagunça iniciara-se pela recusa de dois passageiros, um na janela e outro no corredor, de tirarem seus cotovelos da braçadeira dos seus assentos, fazendo com que o passageiro da poltrona do meio ficasse encolhido, ou melhor, espremido, entre os seus dois gordinhos e folgados vizinhos. Deu uma cotovelada em cada um, ao mesmo tempo, e recebeu dois cotovelaços simultâneos, iniciando o entrevero verbal que se ouviu em todo o avião. Os ânimos foram acalmados com a mudança de poltrona do passageiro espremido, até porque estava em nítida e flagrante desvantagem, eram dois contra um...
Ora, pensei com os meus botões, não é exatamente o que acontece com as pessoas hoje em dia? Virou espetáculo rotineiro assistirmos, sem mais nem menos, uma polêmica discussão que se inicia já acalorada, com acusações e xingamentos, seja na fila do supermercado (anda aí, ô lesma!), na porta do elevador ou do metrô (sai da porta, folgado!), dentro do cinema (desliga essa porra desse celular!), ou no balcão do cafezinho (não foi assim que eu pedi!). Fui adiante em minhas reflexões, e me perguntei: afinal, o que terá acontecido com o brasileiro cordial pintado a sete cores e mil palavras por Sérgio Buarque de Hollanda, ou o brasileiro gentil de Darci Ribeiro? Acho que morreram, concluí, ou desistiram de gentilezas depois de inúmeras crises, de tantas incertezas nesses tempos competitivos de globalização. Quem sabe o brasileiro cansou, desde que se anunciou que o fim do mundo está próximo com esse tal de aquecimento? Ou então aprendeu também a ser malcriado, de tanto assistir filmes americanos em que mocinhos e malvados primam por competir em quem é o mais mal humorado e carrancudo.
A situação anda tão precuária – misto de situação preocupante na pecuária – que é perigoso você dirigir a um colega de trabalho um singelo como vai?, pois pode receber uma tijolada de volta, tipo o que é que você tem com isso?, ou ainda um não te interessa!
No trânsito das cidades maiores há que se ter cuidado em não chamar ninguém de barbeiro, pois a gente pode se ver com um trintoitão na cara. Esbarrão na rua, então, raramente alguém se vira para pedir desculpas e ainda pode ouvir um xingamento inesperado.
Até recentemente – no máximo uns 10 anos - os brasileiros cometiam suas indelicadezas não retornando um recado telefônico, ou não respondendo a um e-mail, mas hoje em dia isso virou lugar comum. Eu, como diz meu amigo Carlão, da Publique, que dou resposta até para spam, ainda acho um desaforo, mas as pessoas consideram isso normal, tamanho o volume de e-mails que se recebe hoje em dia. E vem mais mudança de comportamento pela frente.
Jornalistas como eu já sabem, estamos acostumados a receber mensagens ou e-mails de todo tipo, pedindo mais informações, elogiando algum artigo ou reportagem, mas hoje em dia o que mais tem é crítica e paulada. Parece que o brasileiro saiu do armário, assumiu uma postura mais agressiva. Por culpa de alguns dos últimos artigos aqui publicados recebi e-mails com xingamentos, uns até me acusando de vendido para as multinacionais dos transgênicos e dos agrotóxicos. O que eu não havia recebido até hoje, em toda a minha vida profissional de mais de 40 anos, eram ameaças. Ameaça de processos judiciais tive muitas, nenhuma concretizada. Alguns colegas envaidecem-se por serem processados, particularmente acho um assunto aborrecente, mas ser ameaçado como fui, de "não atravesse na minha frente numa faixa de pedestres, pois sou capaz de atropelá-lo", essa foi nova. Não tenho receios, sei nome, sobrenome e endereço do ambientalista ameaçador, mas que é uma situação esdrúxula, sem dúvida que é. Pelo sim e pelo não, vou começar a colocar um pouco mais de pimenta nos próximos artigos, podem acreditar, é só esperar para ver. Como tenho dito a alguns amigos jogo no time do nóis capota, mais nóis não breca...
Independentemente dos entreveros pessoais e profissionais me ocorreu que vivemos hoje no Brasil, e pelo mundo afora também é assim, a um processo que está se tornando crônico pela animosidade demonstrada pelas pessoas no convívio com seus pares, sejam familiares, colegas profissionais, clientes, e em especial com os desconhecidos. Coloca-se para fora toda a raiva contida, numa facilidade jamais imaginada em outros tempos. E dê-lhe cotovelaço!
Tudo parece encerrar uma genérica e permanente discussão ideológica. Uma conversa sobre política ou questões cambiais, sobre poluição do planeta, ou da violência que campeia nas cidades, pode redundar num amplo e generalizado bate-boca contra o governo de Lula, o atual e o anterior, ou tudo é culpa do ex-presidente FHC. Depende com quem se está falando, mas se a sua opinião não coincidir com a do seu interlocutor, muito cuidado, pode estar a caminho um conflito de proporções temerárias. É quase um confronto de torcidas organizadas de são paulinos x corintianos x palmeirenses, ou os equivalentes regionais Brasil adentro. Não tem simpatia, e nem moleza, e assim cotovelo neles! - pois são os únicos culpados, os outros são os inimigos.
Um amigo recentemente me afirmou, depois de uma conversa sobre o tema dessa crônica, que eu deveria estar sofrendo muito com esse novo modus comportamental dos brasileiros, na medida em que muitos conhecidos e colegas profissionais me consideram polêmico. Concordei em parte, porém não sofro como vítima do problema, mas que tenho entrado em entreveros intermináveis isso é verdade. Se a gente diz uma coisa, outra é interpretada, e lá vem cotovelaço! O mesmo amigo avaliou que o problema era esse, eis que me considera um cara mal compreendido, porém jamais polêmico. Pensei sobre o assunto e tive que concordar integralmente, ainda que intimamente, pois o problema está na incapacidade das pessoas se comunicarem, sejam intenções ou sentimentos e opiniões, e por isso se trumbicam, como dizia o velho guerreiro. E acabam dando cotovelaços uns nos outros, o tempo inteiro. De um lado porque não têm paciência para ouvir uma opinião contrária, e de outro porque não querem mudar de opinião.
Um grande exemplo do novo e contemporâneo mau humor dos brasileiros está nos blogs brasileiros. Os comentários de alguns visitantes geram caóticas brigas virtuais. Algumas vezes os comentários são melhores do que os próprios artigos publicados, mas a questão assume proporções hilárias quando dois ou três dos comentaristas resolvem brigar entre si. Nunca te vi, mas sempre te odiei...
Falta ao brasileiro a cultura da democracia, a experiência do debate de idéias. Partem de premissas diferentes para debater um problema, mas terminam se estapeando, verbal ou fisicamente, porque os argumentos não importam mais, tudo é uma questão de simpatia ou antipatia, e exacerbam-se as posições. Ao invés de discutir as idéias e os conceitos desqualifica-se o oponente, o que é muito tupiniquim. Lamentável o clima, essas situações têm registros históricos, costumam antecipar-se aos tempos negros de ditaduras radicais, sempre xiitas, soberanas e fundamentalistas, recheadas de intolerância, seja qual for a cor política ou desculpa social, ou ainda religiosa.
Mas espero estar enganado.
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