Janio de Freitas *
Os 70 anos da vitória dos Aliados na 2ª Guerra coincidem com os 40 anos da derrota dos EUA no Vietnã
Estes dias de maio, há 70 anos, celebravam o fim da Segunda Guerra Mundial com uma euforia a que não faltava indisfarçável sentimento de vingança rancorosa contra a Alemanha e seu povo. Ao passar das semanas e meses, as expressões da alegria se esgotaram e cresceu a ira contra os alemães, com as sucessivas revelações das desumanidades nazistas. Abriam-se para o mundo capítulos terríveis da história dos vencidos, mas se vedavam outros na história dos vencedores, para que permanecessem ignorados pelo mundo.
Não muito depois daqueles dias, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill diria, em discussões sobre um tribunal para os crimes dos chefes nazistas, uma frase franca: "Passamos pelo risco de lá estarmos nós". Churchill escreveu muito sobre a Segunda Guerra, e, com diferentes formas, exprimiu muitas vezes aquela percepção. Foi um dos pontos em que não precisou mentir, como a sucessão dos anos e das revelações mostraria contra muitos outros trechos.
Americanos e britânicos cometeram muitos crimes de guerra, que a historiografia descreve mas não qualifica. Cidades alemãs arrasadas e populações trucidadas por bombardeios aéreos quase sem intervalo, divididos entre a aviação americana durante o dia e os britânicos à noite. O próprio Churchill é duríssimo ao citar a destruição de Dresden e Colônia em sua longa "História da Segunda Guerra Mundial" (oito volumes na edição inicial).
Como responsável pela avaliação, na Alemanha vencida, dos reais efeitos da tática de bombardeios maciços, John Kenneth Galbraith conta em suas memórias as decepcionantes conclusões da investigação. A população civil, e não a indústria foi a mais arruinada pelos bombardeios. Destes, Churchill pôde falar, mas não de um outro.
A cidade inglesa de Coventry foi destruída por gigantesco bombardeio alemão. O primeiro-ministro Churchill estava informado de que haveria o ataque. Não mandou evacuar a cidade, nem outra medida para proteger a população, convencido de que fazê-lo indicaria aos alemães a decifração do seu código. A decisão quase inacreditável só veio a ser conhecida 36 anos depois. Graças a um livro de apenas 200 páginas, mas tão perturbador, da história contada da Segunda Guerra e de muitos dos seus chefes, que um acordo tácito o encobriu tanto quanto possível.
Menino ao tempo da guerra, e desde então apegado ao tema, nos anos 70 e por desfastio passei os olhos em um exemplar -- na seção de livros, claro -- da oficialesca "Time". Era a de 9.12.74. E me surpreendi com a resenha de um certo "The Ultra Secret": o inglês F.W.Winterbotham, ex-piloto e depois integrado ao "serviço de inteligência" da força aérea, aos 76 anos vê-se como último a saber toda a história de um lado secreto da guerra. Decide contá-lo, por instância familiar, para que não se perca. Importar livro com aquele título, na ditadura, daria em aborrecimento. O sociólogo Luciano Martins o trouxe.
Depois de tanta leitura sobre a guerra, tudo iria recomeçar: Winterbotham conta como foi quebrado o código secreto do comando alemão, inclusive o de Hitler, e como uma equipe de cientistas e técnicos, por ele gerenciada nos arredores de Londres, conduziu a finais favoráveis tantos momentos decisivos da guerra. Há pouco, o autor central da quebra do código, Alan Turing, tornou-se assunto frequente na imprensa por ter um arremedo da sua vida contado em filme, mais por sua oprimida homossexualidade que por ser um dos inventores fundamentais do computador.
Todos os grandes êxitos contra os alemães partiram da decifração das ordens, localizações e planos trocados entre os comandos e as forças nazistas. Até a invasão da Normandia foi salva pelo conhecimento prévio das ações inimigas. Mas, nunca perdoados pelos americanos, os ingleses lhes deram as informações sem jamais lhes passarem o sistema de decifração, certos de que fariam alguma asneira. Ainda assim, fizeram: informados, abateram o avião que levava o almirante Yamamoto. Não só sinalizaram a decifração do código, como mataram o principal favorável japonês a um acordo para acabar a guerra.
Os 70 anos da vitória dos Aliados na Segunda Guerra coincidem com os 40 anos da derrota dos Estados Unidos no Vietnã. Esta guerra ainda não tem o seu Winterbotham. Mas desde o primeiro momento tem história tão mentirosa quanto a Segunda Guerra Mundial. E com muito mais crimes de guerra que não tiveram o seu Tribunal de Nuremberg.
Mal começavam as hostilidades, depois ficou provado, aviões dos Estados Unidos despejaram produtos tóxicos que mataram 76 pessoas. O "agente laranja", desfolhante venenoso lançado nas florestas e plantações, ainda faz vítimas. A principal arma de bombardeio foi o napalm, bomba cuja explosão libera uma gelatina em chamas que gruda no corpo e nos objetos. A guerra química é a mais forte proibição da Convenção de Genebra. Os norte-americanos a praticaram em larga escala durante 11 anos.
Foram bonitas as celebrações da vitória feita por mentiras de competência militar. Não se tem notícia das celebrações da vitória vietnamita sobre as mentiras derrotadas.
* o autor é jornalista.
Publicado na Folha de São Paulo
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