Carlos Eduardo Florence *
Quando acordo com aquele sabor oxigenado de guarda-chuva envelhecido em canela avinagrada por alcatrão, ocorre algo mais assintomático, segundo Pai Joãozinho de Oxossi, meu conselheiro espiritual das fazes gravosas primitivas. À noite, sozinho, na coxia, internado com a angústia, tomei dois cálices de tristeza mordiscando um sanduíche de solidão, embebido em paranoia, lendo as adoráveis tropelias eróticas do Velho Testamento. Como sempre, escovara a dentadura careada e a trancara no depósito escuro sob a escada, para que não ficasse, sadicamente, me espionando dormir. Não entendi por que o psiquiatra, do sanatório ao qual fui coagido no dia seguinte a estes fatos, não captava as minuciosas ponderações expostas agora por esta carta. Relatei-lhe que pegando no sono, pela janela do além, entrou o velho companheiro de meu avô Joquinha nas vaquejadas lidas, Clemêncio Donato, que morrera há cem anos.
Depois da cachaça, adiantou-me que viera a mando correto e respeitoso nas composturas, a pedido do parceiro demais prezado, meu antepassado, para revelar no soturno da confidência que eu teria sido parido em encarnações anteriores, carismáticas e simultâneas, em verdade dos espíritos alados, por obra do amor perfeito de Alexandre da Macedônia com a camela preferida do seu harém para equitação guerreira. Os ventos dos desertos embalavam as folhas das tamareiras, inspirando as poesias para os encantos dos sonhos e seduções. Alá, criador do céu. Das alas e dos aléns era testemunho das reencarnações para aprimoramento do espírito.
Registro que antes de me dirigirem obstinadamente para esta casa de saúde, havia procurado meu conselheiro amigo, Monsenhor Rossi, para elucidar os mesmos detalhes levados ao psiquiatra. Ponderado, calmo e racional como sempre sou, fui expondo ao Monsenhor que assassinar meu pai Alexandrino foi tão fácil como resfolegar penitência de oração após a confissão sabatina para comunhão na missa de domingo. A dificuldade se prendia à revisão incestuosa, sob a nova singularidade heterodoxa e inusitada de praticá-la com a figura de uma quadrúpede maternal surrealista, longas pernas dalinianas, inibindo qualquer fantasia erótica por todos os achaques edipianos disponíveis. O monsenhor plasmava sua preocupação tentando chamar alguém para também ouvir a verdade que eu lhe relatava.
Resistindo ao óbvio, pensei que o Monsenhor estaria mais surdo do que de hábito e, suavemente, tentei balançá-lo pelo pescoço para melhorar a audição. O sacristão, não entendendo o gesto carinhoso, despencou-me o crucifixo no lóbulo frontal, prejudicando-me os raciocínios dos dias pares. Depreendi ser a razão de estar escrevendo deste local e sorrindo ao simpático pessegueiro ao meu lado, aqui internado por envolver-se afetivamente com uma seringueira geneticamente modificada, sem autorização da ONG de plantão.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado no https://carloseduardoflorence.blogspot.com.br/
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