Carlos Eduardo Florence *
É seu destino, lua tímida, cuidar das marés e paparicar os bardos canalhas. A madrugada sabe brincar de inusitado, momento em que os deuses e os demônios repousam depois de se esfalfarem em orgias. O mar chamou-me delicado a atenção para uma casa escondida entre as árvores e encoberta, em parte, pelas sombras das ilusões que a confrontavam. A areia guardara, com cuidado, as marcas das pegadas de um pé miúdo, indeciso, com certeza de esbelta ternura que por ali transitara. Segui as marcas, medindo-as com fantasias, imaginação e sonhos, transfigurando em colcheias. Abaixei os olhos para atender um beija-flor alegre, que tentava pousar em minha alegria para ensinar-me o caminho do amor. Receoso, alertei o beija-flor para não bater as azas tão alto para não assustar a princesa que deixara as pegadas que perseguíamos e se refugiara na casa isolada. O passarinho, indiferente, puxou-me para a trilha do carinho, que contornava o lado esquerdo do afeto e se pôs a brincar no aninho das minhas divagações.
Poderia ser que o colibri intencionasse arrastar-me diretamente ao castelo para que eu entrasse imperioso, com suaves insinuações e verbos carinhosos e salvasse a princesa do monstro da solidão que a devorava. O beija-flor e eu nos sentamos calmos para um diálogo franco e aberto sobre o amor e o devaneio. Os sonhos são construídos destas sutilezas e fomos trocando nossas extravagâncias, seguindo cuidadosamente as pegadas para não acordar o silêncio. A madrugada veio calma puxando um sol ranzinza com preguiça de enfrentar um dia todo de tarefa marulhando a maré montante. Aqueles todos faziam parte da certeza de que encontraria nos rastros das pegadas um imenso amor me esperando para sanar as minhas fantasias mais agitadas. Caminhei sobre os sonhos como quem pretendesse deflorar o futuro. Perguntei ao colibri se me acompanharia até os delírios enquanto acompanhava as ondas invadirem a solidão.
Os regatos, no entanto, que desciam das serras, margeando os muros altos do castelo, trouxeram notícias não alvissareiras de que as pegadas da praia estariam sendo destruídas, pois o vento se desentendera com a maré e as ondas prefeririam subir canalhas pelas areias e recifes, não deixando vestígios para os ingênuos e sonhadores. Voltei à praia com o colibri, por prudência, onde as pegadas haviam sido impiedosamente comidas junto com as minhas desilusões pelas ondas que nunca perdoam a dúvida.
Um barco chega requebrando sobre o silêncio, recortando as ondas e desfazendo as espumas, de onde salta um rapaz atrevido, petulante e seguro, bonito, se empertigando a caminho das trilhas que levavam a casa. O mundo se estraçalhou, minha princesa se esvaiu do inconsciente e me agrediu encarnada numa plebeia vulgar, concreta e linda para jogar-se nos braços do moço que a segurou e carregou carinhoso, bailando no ar, até o barco, para que ela nunca mais deixasse pegadas eróticas na areia e não atiçasse fantasias nos loucos. O colibri sorriu sobre as ondas destruindo os desejos e se escondeu nos meandros da solidão.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado no https://carloseduardoflorence.blogspot.com.br/
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