Carlos Eduardo Florence *
Caíra eu em depressão profunda face às medidas tomadas de reclusão pela invasão dos vírus, políticos, economistas e anões da sonolenta Branca de Neve. Mesmo se fez assim o último outono em Antraçós das Benções, entre pintassilgos, melancolia, inclusa nostalgias, sim, abrindo diariamente as cortinas dos invisíveis para nos pormos a saudar nada menos do que o inelutável, micro infinitesimais, famigerados diluídos no abstrato.
Os movimentos eram lerdos, mas nada desmentia o refrão medieval: “uma centopeia não faz verão”; com isto as andorinhas se sentiram ultrajadas. Vesti máscara, chapéu verde oliva, empunhei jornal, com polêmica manchete: fecha, abre ou o bicho pega, assumi as sandálias havaianas e fui proibido de ir à praia ou conversar com o além. Não havia inclusive confronto entre a metamorfose do absurdo e as pequenas soluções das premonições confirmadas sobre a influência do paradoxo, tanto que as brisas contornavam as meditações não permitindo às flores restantes encantarem os sorrisos. Entre o delírio e a loucura não se conseguia introduzir mais do que um nada.
O desespero assumiu o tempo e o verbo. Seria a primeira secção de psicanálise com o doutor Aracácio e não poderia deixar de estar com fome, ansioso, sentindo odor de curiosidade e com premonição de que no final da tarde sentiria falta do guarda-chuva, pois o sino da capela avisou que a missa das seis seria professada em mandarim por Dom Keioshan pelo féretro de sete contaminados em sequência e destino.
Notei, caminhando para o consultório, que os jardins ainda eram muito dependentes por serem da infância. Adentrei pela ótica minimalista sem grande entusiasmo. Saudações ofegantes, discretas. O psiquiatra ordenou-me deitar no canapé e debulhar livremente meus delírios existenciais. Livre pensamento. Obedeci. Existia uma atmosfera de romantismo pueril entre as samambaias deprimidas e as crianças aguardando a hora de recolher pela pandemia. À distância, provável até pela sutileza delicada da neblina indefinida, a mera imaginação não parecia senão relutante silhueta de metáfora a procura de sua poesia.
Nos escombros do gerúndio, em que cirandava naquele final de outono a imaginação, confirmou-se a expectativa antiga do vácuo existencial entre a angústia e o conteúdo da melodia dos menestréis compondo as sinfonias dos adventos prováveis, que propõem ser a existência que antecipa a essência para criar o nada, segundo os existencialistas. Com isto descrito, relacionei com o vírus começando a se impor a todos os gostos, gestos, paladares.
As ruas se esvaziaram ao se ouvirem os sons retumbantes dos invisíveis com os dentes trincados mastigando o pavor. Pairava, sem preconceito algum, nítido sabor hermafrodito da metamorfose transformando o acanhado silogismo em petulância por ser a liberdade proveniente da angústia. Escutei o psiquiatra coçar o subjetivo ou anotar algo sobre uma folha azul pelo aroma de lua nova dos raios de sol transcendendo as venezianas, as fantasias e os bafos invisíveis dos vírus. Dei a devida distância e retruquei que os dados levantados, segundo autoridade do assunto, pelo sequenciamento da ilusão de ótica, poder-se-iam estabelecer a correlação, indiscutível, entre a menopausa e a síndrome psicológica do afro-lagartixa. Amedrontei-me com o ruído similar ao silêncio tentando ultrapassar a porta do fundo em função das meras equações do segundo grau se recusarem a estabelecer correlações com as escalas dodecafônicas e o assim o vírus poderia ser intransigente.
Retornei à infância, lacrimei envergonhado, e atribui o inexplicável ao complexo de Édipo. Não pude atinar se o doutor chegou a entender exatamente o que eu transmitira, mas não havia condições de repetir, pois a sensação de que tirara ele os sapatos, como preferem estes profissionais para verificarem onde estariam os atos falhos ou as censuras, fora indeterminada.
Enquanto tal, poderia se observar claramente que os jornalistas e as madressilvas procuravam suas razões e preconceitos entre uns papeis rasgados que o almoxarife deixara antes de ir ao cemitério na quarta feira. O psicanalista virou a folha do bloco para a página verde em que são anotados casos pessoais, endereço da namorada, receitas culinárias, informações em sânscrito dos analisados mais esquizofrênicos, melhores safras de vinho. Em seguida tossiu, discretamente, sugerindo, captei, com argúcia, pela entonação da sua mensagem para não ser tão enfático nos assentos graves e intempestivo, eu, nas vírgulas entre o sujeito, o predicado e o objeto indireto.
Não pude deixar de me reportar à borboleta Viléia, mais afeiçoada ao verbo intransitivo, exatamente quando no confronto da pandemia com as decisões de investimento nas bolsas, circunscreveu uma hipérbole original resultando em graciosa parábola ecumênica do entretenimento entre animais imaginários, figuras abstratas, mensagens de pêsames, remédios hermafroditas, orações poderosas. Desta forma intransigente, as formulações consistentes foram aproveitadas pelas crianças saindo repentinamente do Sétimo Sermão de Isaias, Capítulo dos Abstratos e se puseram a saltar amarelinha antes de levarem estas informações fundamentais como trabalho de casa sobre o imprevisível. Lembrei-me, pelo em tendo sido minha infância, que as melhores jabuticabas do outono são as colhidas entre as latitudes boreais e oitava de Beethoven.
O único aparte, até então do casmurro médico, foi de que ele preferia a quinta. Pela plasticidade das circunstâncias, sabores das jabuticabas ao tempo, pavor dos invasores, revoadas das aves e da angústia, lembrei Van Gogh retratando o belo com o caos dos seus devaneios. Pousou em surdina em meu além vagando, um som com perfume de fim de dia e tive uma sensação de suicídio ou vontade de beliscar os croissants da Maria Antonieta. Os vírus cairiam, supus, com entardecer e durante as discussões inúteis, repeti ao abismado doutor que imaginara um enorme abstrato de esperança azul, antes de deixar onde estava em transe sobre o canapé cruel, escolheria um solitário banco de jardim e verificaria se seriam horas adequadas para um aperitivo ou a senhorita que passaria mascarada deveria se dirigir em português ou em libras para pedir, desesperada, ao taxi que a levasse para um horizonte sem limites ou a um refúgio desabitado.
Descrevi com precisão que uma imensidão cinza fosca envolvera Antraçós das Benções e fomos todos nos diluindo em eu’s - (o psiquiatra corrigiu para egos) - assimétricos e disformes, nos desfazendo dos nossos corpos, almas, por findos intransitáveis, entrelaçando deformidades geométricas, muito irregulares e com seus ângulos indefinidos, nos transformávamos em sabores de absurdo, cheiros de pavor, sensos de incompetências, olhares de inacabados, acenos da morte. Desencarnei então em fá sustenido e pesadelo sobre o canapé, por tempo indefinido, mas foi como apalpei desesperado o nada e me pus a não existir em sendo.
Acredito que o psicanalista e eu dormitamos neste intervalo de transe, tanto que fomos surpreendidos pelo forte ruído do bloco de papel e peso abrutalhado das anotações caindo no chão. Ele pigarreou sisudo em voz cavernosa que uma hora analítica se fizera. Senti uma fervura de delírio borbulhando entre o passado e o futuro sem o presente solucionar ou comparecer. Metrificamo-nos de tão longe que nossos inconscientes se depauperaram em solidões. Não nos abstivemos, mesmo assim, da sensação clara do vírus intentando imiscuir-se com suas garras sádicas pelas nossas insondáveis demências apavoradas, regurgitando o mistério, o insondável, a intimidade das próprias ignorâncias e por último os pavores que transvestíamos.
Invadindo, pelo inexplicável entranhado, nos demos um forte jamais, distantes o mais possível, e até o infinito, se houvesse.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado em http://carloseduardoflorence.blogspot.com/
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