Marcos Jank, André Pessôa e Renato Buranello (*)
Mais uma vez volta à baila a discussão sobre estrangeiros poderem adquirir, ou mesmo simplesmente utilizar (via arrendamento) terras rurais brasileiras. É um tema recorrente, que dá as caras de tempos em tempos, formando uma novela interminável e irracional.
Desta vez o tema ressurge com o PL 2.963/2019, em discussão no Congresso Nacional, que “ameaça” flexibilizar mais uma vez a possibilidade de estrangeiros terem propriedade ou posse das nossas terras.
Essa tem sido uma trajetória de idas e vindas desde o início dos anos 70, inaugurada com a Lei 5.709/71, que impôs restrições aos estrangeiros, depois complementada por outras leis e “reinterpretada” por sucessivos pareceres da Advocacia Geral da União (AGU), ora flexibilizando e ora restringido, sendo que o último deles, de 2010, impôs restrições bastante severas à propriedade e posse de terras por estrangeiros, mesmo quando operando no país mediante empresas nacionais, com CNPJ nacional.
O atual PL em discussão propõe nova flexibilização, basicamente permitindo a propriedade e posse por empresas estrangeiras autorizadas a operar no Brasil ou por empresas nacionais detidas por estrangeiros, mas com as mesmas limitações por município que a lei de 1971 já estipulava (1/4 da área do município, sendo no máximo 10% para pessoas da mesma nacionalidade). Adicionalmente, para certos casos será necessária a aprovação do Conselho de Defesa Nacional (CDN), em especial para a aquisição por certos tipos de ONG, Fundações externas, fundos soberanos e empresas estatais estrangeiras. Há, ainda, restrições quando se tratar de Bioma Amazônico e faixas de fronteira. Em outros casos também se prevê a necessidade de aprovação pelo Congresso Nacional, o que, além de extremamente moroso e complicado, eleva o receio do surgimento de burocracias intermináveis e cartórios.
De toda forma, trata-se de flexibilização não tão radical e, como se vê, cercada de cuidados para com os temas mais sensíveis. Mesmo assim, nota-se, como também já ocorreu no passado, surgir a gritaria dos inconformados com esse projeto fundamentado nos princípios constitucionais da atividade econômica: propriedade privada, livre concorrência, liberdade de mercado e livre iniciativa. As críticas, mais uma vez, vêm sobretudo dos setores à esquerda e – por incrível que pareça – de parte de importantes lideranças ruralistas, que hoje se alinham contra o livre mercado, outrora arduamente defendido pelo setor.
No caso dos setores à esquerda, provavelmente as críticas decorrem do simples fato de que o projeto se fundamenta na liberdade de mercado e iniciativa. Adiciona-se a isso a falsa ideia de que a maior procura por terra (agora por estrangeiros) pode provocar a “expulsão” de inúmeros pequenos produtores, muitos dos quais já vivem em condições precárias e de subsistência. Parece incrível que um processo de entrada de capital no setor para aquisição de terras que jamais sairão de onde estão, e que irão provavelmente valer mais, possa prejudicar o pequeno produtor, que, aliás, tem o livre arbítrio de fazer o que quiser com suas terras.
Também são comuns, nos grupos de esquerda, críticas associadas ao risco de perda de soberania e ao possível desrespeito a exigências ambientais e trabalhistas. Entretanto, essas importantes questões não são determinadas por quem controla o ativo terra, mas sim pela capacidade de impor a quem o detém o ordenamento nacional, amplamente protetivo dos recursos naturais e dos direitos sociais, sem qualquer distinção entre brasileiros e estrangeiros ou benesse a estes.
Já no caso de alguns dos ruralistas, há os que veem a aquisição de terras por estrangeiros como uma ação antipatriótica que afronta a soberania nacional, apesar dos vários mecanismos de controle do projeto. Sobre esse ponto, aliás, vale lembrar a ironia de negar a própria origem do sucesso do agro nacional. Nossos produtores são quase todos filhos, netos e bisnetos de estrangeiros que aqui encontraram terras para trabalhar e ajudaram assim a construir uma história de enorme sucesso. Desde o século XIX, o principal capital estrangeiro do agronegócio brasileiro foram os agricultores “gringos”’ acolhidos no país, que puderam realizar seus sonhos ajudando a transformar o Brasil num celeiro do mundo. Por exemplo, a possibilidade de vender terras no Sul e comprar lotes maiores no Centro-Oeste foi um fator absolutamente determinante para a incrível transformação tecnológica e social da agricultura brasileira, por meio da qual migrantes que chegaram pobres da Europa e da Ásia, para trabalhar como colonos no Sul e Sudeste do País, se transformaram nos grandes produtores que fizeram a revolução tropical agrícola brasileira.
Há, ainda, produtores mais capitalizados que buscam expansão “barata”, para a qual é conveniente que haja pouca concorrência na aquisição e arrendamento de terras, mantendo preços mais baixos do que seriam num cenário de demanda (por terras) fortalecida pela competição de capitais estrangeiros.
Enfim, como esses grupos são todos bastantes vocais e organizados, possivelmente a tendência será, mais uma vez, o projeto de flexibilização naufragar. Contudo, vale a pena refletir sobre quem serão os “perdedores” caso este naufrágio venha a ocorrer: é principalmente o próprio país, que abrirá mão de um capital saudável, pois de longo prazo e voltado à produção, gerando empregos, renda e impostos. Isso sem contar a evidente contribuição do capital estrangeiro para a melhoria dos padrões de ESG no agronegócio brasileiro, pois a maioria destes investidores está sujeita, na sua origem, a critérios próprios rígidos de investimento nas áreas ambiental, social e de governança corporativa.
Na impossibilidade de ser investido no Brasil, país onde provavelmente faz mais sentido a alocação, esse capital poderá se direcionar a países que serão futuros concorrentes do Brasil, minando vantagens comparativas que hoje possuímos. Um capital que, na forma de financiamentos - que requerem a possibilidade de constituição de garantias imobiliárias com segurança jurídica -, pode ajudar muitos dos pequenos e médios produtores a expandir e intensificar suas operações. E, ainda, um capital que, ao permitir a operação de seus players nacionais, pode contribuir para a redução do protecionismo viesado imposto por países do primeiro mundo, preocupados com a ameaça que significa nossa produtiva e pujante agropecuária tropical.
Contudo, como de costume, a maioria de agentes econômicos dispersos e desorganizados não têm voz nem capacidade de fazer frente aos interesses de grupos organizados. E assim, mais uma vez, uma boa ideia que ajudaria o setor a crescer e se capitalizar poderá ser descartada.
os autores são:
- Marcos Jank, professor de agronegócio global do Insper.
- André Pessôa, sócio fundador da Agroconsult.
- Renato Buranello, sócio do escritório VBSO Advogados e fundador do Instituto Brasileiro de Direito do Agronegócio (IBDA).
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