Evaristo de Miranda 2
Para muitos,
este feriado não lhes diz nada, não corresponde à sua perspectiva filosófica ou
religiosa. Finados está além de qualquer religião. Quem profana esta data
esquece seus ascendentes e antepassados. Perde a memória e, sem querer, profana
a si mesmo. Que ascensão pode ter alguém na vida, quando não se lembra de seus
ascendentes? Quem imagina-se só, começando em si mesmo, triunfante e vencedor,
age como se fosse filho do nada. E os filhos do nada são sementes do caos.
O
finar evoca o findar e o morrer. Os finados chegaram ao fim e foram ceifados no
seu tempo. O feno é a erva ceifada e seca que serve de alimento aos animais em
períodos difíceis de inverno ou seca. Na Bíblia, o homem é comparado com a erva
do campo. Finar e fenar. Feno vem do grego phaíno:
brilhar, aparecer. Epifania evoca manifestação, luz do alto que nos veio
visitar. A reluzente lâmina da morte não apaga os finados, apenas os igualiza
diante das leis da natureza.
A
foice simboliza os ciclos das colheitas e da renovação. A colheita só se obtém
cortando o caule. Esse cordão umbilical liga o fruto à dependência da terra
alimentadora. A colheita é o grão condenado à morte para servir de alimento,
sustentando a vida, ou para germinar como semente. A vida e os exemplos dos
antepassados alimentam os viventes. São um feno de luz. Sinal da progressão
temporal e individual, a foice da morte brilha na noite de nossas vidas. Essa
lua crescente, nunca declina. Como diz o poeta árabe Ibn-al-Motazz: “a foice de
ouro no campo das estrelas”.
No dia
de finados é bom visitar cemitérios, limpar e ajeitar túmulos, acender uma vela
na igreja ou em casa, pronunciar uma oração, *fazer um minuto de silêncio (pelo
menos!) e meditar*. A ritualizar os mortos é terapêutico. A prática desses
ritos profanos e sagrados dão outra perspectiva ao tempo. Existe um tempo para
tudo.
As
honras fúnebres variam entre as culturas. Sempre existem e deveriam ser
cultivadas. Se uma cultura perde a capacidade de honrar seus mortos, já não
sabe honrar os vivos. Honrar nobilita quem recebe e quem oferece. A eternidade
começa aqui e agora. A vida não é uma ante-sala da morte. O passar dos anos
anuncia o prometido a todos e para sempre: a possibilidade de evolução pessoal
a cada ano, o reinício, a morte e o renascimento.
Os cristãos
creem na ressurreição. A morte é sua Páscoa, sua passagem para Deus. Os Finados
lembram: não se trata de viver somente a inevitável passagem do tempo, as
idades e o envelhecimento. O tempo - quarta dimensão do humano - pode ser um
tempo de consciência, um tempo de graça, iluminação e vida plena.
1 Agora e na Hora – Ritos de Passagem à Eternidade (Ed. Loyola)
2 o autor é doutor em ecologia, pesquisador da Embrapa
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