Maurício Antônio Lopes *
Praticamente todas as nações desenvolvidas são capazes de
utilizar a ciência pública à semelhança de uma "locomotiva
limpa-trilhos", que vai à frente removendo barreiras e abrindo caminhos, com
projetos de maior risco e prazos de maturação longos, que não atraem o setor
privado.
A pesquisa apoiada pelo Estado é essencial na remoção de
obstáculos para que empresas e indústrias encontrem caminho livre e possam
gerar empregos, riqueza e progresso. São
inúmeros os avanços experimentados pela sociedade moderna na medicina, na
produção de alimentos, na revolução da informação e da comunicação, no
desenvolvimento de alternativas energéticas limpas etc., que só se tornaram
possíveis graças aos investimentos do Estado em pesquisa científica.
Exemplo emblemático é o smartphone, que resultou de sete
tecnologias-chave, desenvolvidas principalmente por institutos públicos e
universidades, e habilmente reunidas no setor privado para criar uma inovação
que ganhou todos os cantos do planeta. O
GPS, a internet e o algoritmo que levou ao sucesso do Google foram todos
desenvolvidos a partir de financiamento público à ciência básica nos EUA. Os
princípios ativos de novos medicamentos são, na sua maioria, desenvolvidos por
universidades e institutos públicos de pesquisa, e transformados em produtos
por empresas farmacêuticas.
Momentos de grave crise, como o que vivemos, demonstram quão
essencial é o Estado no papel de garantir a infraestrutura e a capacidade científica
necessárias para se compreender e superar infortúnios. Estudo recente estimou que em apenas seis
meses — entre 1º de janeiro e 30 de junho de 2020 — cerca de 24 mil artigos
científicos relacionados à Covid-19 foram produzidos, a grande maioria resultante
de pesquisas na área biomédica financiadas com recursos públicos. Esse esforço sem precedentes acelerou a
geração de conhecimentos e a busca por tratamentos e vacinas para conter a
transmissão do novo coronavírus, com vários candidatos promissores produzidos
em tempo recorde.
Ainda assim, há governos que insistem em ignorar a
importância da ciência, muitos considerando os investimentos em infraestrutura
de pesquisa e inovação um luxo de alto custo e não um investimento estratégico,
promotor de progresso e de resiliência na sociedade. Até uma das maiores
potências tecnológicas, os EUA, tende a perder a hegemonia em financiamento à
pesquisa básica, que alavancou a vantagem competitiva da indústria e o
crescimento do PIB americano desde a Segunda Guerra Mundial. O contrário ocorre em países como a Coreia do
Sul, Emirados Árabes, Índia e China, este último com investimentos massivos em
ciência — US $ 280 bilhões em 2017, o que equivaleu a 2,12% do gigantesco PIB
do país e a 20% do total das despesas mundiais com pesquisa e desenvolvimento.
O fortalecimento da ciência no ambiente público e a promoção
de parcerias público-privadas para recuperação do setor industrial são desafios
críticos para o Brasil, que precisa mais do que nunca ampliar a criatividade
econômica e a complexidade industrial, transformando seu enorme sucesso na
produção de commodities — minério, petróleo e produtos agropecuários — em
plataformas de conexão com cadeias produtivas mais nobres, de alto valor
agregado. Por exemplo, diversificar,
especializar e agregar valor à produção agropecuária nacional é, mais do que
uma necessidade, um imperativo para o futuro, e missão possível de se alcançar,
considerando que países de alta complexidade industrial, como Canadá, Alemanha,
França, China e EUA, conseguem fazê-lo, valorizando e protegendo, com todos os
instrumentos possíveis, seus setores agrícolas.
O Brasil pode ir além, levando em conta as vantagens
extraordinárias que possui para inserção na emergente bioeconomia, a economia
de base biológica, renovável e sustentável.
O país já é líder global na produção de energia de biomassa e dá passos
robustos na produção de bioinsumos e químicos renováveis. Recentemente os
jornais noticiaram que a empresa brasileira Marfrig — uma das maiores
processadoras de carnes do mundo — lançou uma inovadora linha de "carnes
carbono neutro", a partir de sistemas de produção que integram lavoura,
pecuária e floresta e neutralizam as emissões de gases de efeito estufa, de
acordo com protocolo desenvolvido pela Embrapa. O projeto, considerado de alto
risco no nascedouro, foi bancado com recursos públicos, e agora dá à indústria
brasileira a inédita capacidade de responder a mercados ávidos por uma produção
pecuária de baixo impacto ambiental, em perfeita sintonia com a economia
renovável de baixo carbono.
Esses são apenas exemplos na longa lista de avanços
possíveis para inserção do Brasil na economia de base biológica, capaz de
alavancar segmentos vitais como a produção de alimentos, a saúde, e as
indústrias química, de materiais e de energia. A bioeconomia poderá ainda
projetar o nosso patrimônio mais conhecido, a Amazônia, como grande produtora
de riqueza, progresso e bem-estar.
No entanto, para que isso aconteça, o Estado precisa
empreender e operar na qualidade de um tomador de riscos, mobilizando bancos de
desenvolvimento, universidades e institutos de pesquisa como "locomotivas
limpa-trilhos" habilitadas a lidar com a incerteza subjacente aos
processos de inovação e com a crescente complexidade que marca o nosso tempo e
aplaca a ousadia do setor privado.
* o autor é pesquisador da Embrapa
.
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