Nos Caminhos de Pedra, município de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, além da presença humana de origem marcadamente italiana, existem tesouros culturais, arquitetônicos e paisagísticos que, às vezes, oferecem aos visitantes surpresas que parecem retiradas d’algum baú imemorial. Imagine-se entrando numa propriedade, caminhando pacificamente, à procura de anfitrião, no cascalho de uma aléia formada por videiras que o convocam a visitar a embosqueirada adega, uma envelhecida construção de madeira cujas portas e janelas ficam permanentemente abertas em convite à degustação. A suave luz invernal, que apura os meios-tons para o fotógrafo amador, penetra no ambiente decorado por cestas de colheita da uva dependuradas nas vigas, pairando sobre os tonéis onde dormem os vinhos, a grapa, os licores. No exíguo quadrilátero de chão batido, dois tonéis servem de mesa, com sua fartura de garrafas, em dionisíaca oferta, a ser desarrolhadas pelo constrangido turista, que inevitavelmente acaba caindo em tentação. À saída, a alguns metros dali, na porta de uma casinha, uma senhora acena em cordial despedida.
O visitante retribui e vai em frente, com a sensação de que viveu uma experiência ilusória, mas só até chegar ao local onde funcionava o antigo moinho Cecconello, hoje a Casa da Erva-Mate, onde a produção também parece conduzida por fantasmas, que trabalham animados pelo barulho de cascata produzido pela roda d’água. No relógio está a explicação para a ausência humana: a hora é do sagrado almoço, acompanhado da indispensável sesta. Nos Caminhos, como os caminhantes, ao almoço, pois, na Cantina Strapazzon, onde o espera um pão caseiro com manteiga, de entrada, um bom vinho da casa, naturalmente, e uma inesquecível massa que pode ser recheada com uma pasta de abóbora, por exemplo.
Depois da refeição, continuar a caminhada para ampliar os conhecimentos sobre um dos primeiros núcleos da imigração italiana no Rio Grande do Sul, com suas construções que conservam uma história mais que secular: casas de pedra centenárias, casas de madeira com três pisos, capelas, porões onde mulheres dão continuidade à arte de tecer herdada das avós. Um mundo formado por sete comunidades que compõem o Distrito de São Pedro (São Pedro, São Miguel, Barracão, São José da Busa, Cruzeiro, Santo Antônio e Santo Antoninho), resgatado por iniciativa do engenheiro Tarcísio Vasco Michelon e do arquiteto Júlio Posenato, a partir de um levantamento do acervo arquitetônico do município de Bento Gonçalves realizado em 1987. Nesse itinerário da cultura que os imigrantes italianos construíram na serra gaúcha a partir do século 19, encontrei Seu Bertarello, proprietário do moinho que carrega o nome centenário da família e é classificado, pela Associação Caminhos de Pedra, entre as maiores atrações do lugar.
RESISTÊNCIA
Fundado em 1856, o moinho passou, em 1911, para os Bertarello, família oriunda de Carrara, comuna italiana da região Toscana. O bisavô Jácomo nasceu por lá e veio em 1875 para o Brasil, onde nasceu o avô Giuseppe. Nas mãos da família, o empreendimento funcionou até 1977, quando surgiu o que Seu Bertarello chama de “a crise dos moinhos coloniais”, assim por ele descrita: “A ordem veio de cima, lá de Brasília, obrigando todo mundo a fazer um tipo de cadastramento no Ministério da Agricultura, uma coisa praticamente impossível, para a gente simples que trabalhava nesse recanto do mundo. No fundo, a idéia era acabar com os moinhos coloniais e entregar tudo nas mãos das grandes empresas, ou seja, uma história que já vimos se repetir muitas vezes contra quem não tem poder”.
O nome José Mário Bertarello tornou-se, por sua luta, uma espécie de Quixote às avessas, pois, ao contrário do famoso personagem de Cervantes, saiu do ventre do moinho para defender seu patrimônio, enfrentando monstros burocráticos ditatoriais que, na década do nosso famoso Milagre Econômico, tentaram – e quase conseguiram – eliminar todos os moinhos coloniais. Daqueles 368 pequenos moinhos que existiam na região, apenas 12 sobreviveram funcionando até hoje. “Naquele tempo, os agricultores plantavam o milho e o trigo que alimentavam os moinhos. Com a ação do governo e o abatimento total, a cultura foi sendo substituída pela fruticultura e os moinhos morrendo”, explica Seu Bertarello. Os Bertarello também foram obrigados a parar, mas, por iniciativa do filho, Ailor, retomaram as atividades em 1985 e estão no seu cantinho até hoje, moendo seus 1.200 quilos de milho, branco e amarelo, por dia. Na época em que existia o trigo, eles moíam 5.000 quilos por dia desse grão.
Ao voltar a São Paulo, veio-me a inspiração para compor uma letra que até hoje está à espera de melodia, assim como os Bertarellos estão a minha espera de braços abertos, para beber água na bica e comer uma polenta com frango caipira. Aí vai.
PEDRA 90
Milho, moinho, pedra.
Mói, mói, mói, mói,
Mói, mói, mói
O milho é antigo
A pedra muito mais
Mói, mói, mói, mói,
Mói, mói, mói
Nos Caminhos de Pedra
Resiste o moinho
Defendido à lança
Por certo imperioso
Quixote orgulhoso
A quem Deus retirou
Como um de Camões
Mas, decerto dobrou,
No que ficou bem visto,
A capacidade
Da percuciência
E mói, mói, mói, mói
Mói, mói, mói
Bertarello é pedra 90
Mói branco e amarelo
Pra bolo e polenta
Água nasce na serra
Vem pedra-ferro abaixo
Duetar com a moenda
Pro milho debulhado
Dançar cateretê
Até se desmanchar
Na alegria de ser
Esculento na vida
Fortuna de ouro
Uma festa na mesa
Ode ao Duradouro
E mói, mói, mói, mói
Mói, mói, mói
Bertarello é pedra 90
Mói branco e amarelo
Pra bolo e polenta
Acho, enfim que a resistência dos Bertarello valeu a pena, pelo menos para um jornalista saudosista como eu, que trouxe farinha de milho dos Caminhos e ganhei de Seu Bertarello, o Pedra 90, duas espigas enormes, uma de grãos amarelos, outra de brancos, incentivado a iniciar uma produção que poderia repetir a façanha dos pés de milho do Rei do Baião, Luiz Gonzaga, dando ‘20 espiga em cada pé’, se porventura eu encontrasse uma nesga de terra, onde pudesse plantar, no meio do asfalto paulistano. Bom, ando pensando em adotar uma praça.
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