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sábado, 12 de outubro de 2024

A criança interior ainda vive 1

Daniel Lino de Miranda 2
 

Eu tenho síndrome de Down. Para mim, bebês são fofos, doces e meigos.

Sempre fazem tudo para chamar a atenção de suas famílias. Mostram interesse pelo mundo gigante onde moramos, cheios de esperança e sonhos lindos. O Dia da Criança nos recorda: o bom de ser como criança é que isso não vem da faixa etária. Vem do acreditar naquilo que nos faz felizes, como boas crianças. Em qualquer idade.

Nosso verdadeiro destino e felicidade estão em nossa origem, em nossa infância. Adélia Prado, em uma poesia, pede a Deus a cura de ser adulta: Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande... Como ela, todos podem viver esse desejo profundo, explícito no Dia das Crianças: acriançar nossos gestos e palavras, acriançar a vida e voltar à origem.


Todos podem fazer esta oração nesse dia: Deus, cura-me de ser grande!

Eu pergunto: vocês também têm uma criança querendo sair de vocês? Essa criança interior deve continuar na idade adulta. Ela pode ensinar como se divertir, mesmo sendo grandes. Para alguns, a criança retorna quando se tornam avós. Para outros, os filhos são a possibilidade do retorno à infância.


Cada momento conta muito, quando vivido com seus filhos e netos. Essa magia da pureza nunca morrerá.


Na natureza tudo muda e permanece, sempre. As diferenças ajudam a definir as decisões, sobre nós mesmos. Além da criança em nós, outras neste mundo não têm para onde ir. Abandonadas, sem família. Essas crianças precisam de sua ajuda. Então, diga sim para essa ajuda.


Primavera é tempo de piracema. Os adultos, no Dia das Crianças, deviam fazer como os peixes. Eles nadam contra a correnteza dos rios na piracema. Voltam para trás, buscam as águas cristalinas do nascimento, do princípio. A vida adulta lhes ensinou o caminho rumo ao mar, rio abaixo... Foram ficando cegos de tanto ver passar paisagens, portos, pessoas, aventuras e desventuras. Um dia, para viver de verdade, eles sabem: é necessário voltar ao princípio, aos arquétipos. À infância.


A sabedoria na idade adulta - e ainda mais na velhice -, consiste em abrir de novo os olhos, abandonar a cegueira da experiência e retornar às origens, aos horizontes da infância. Ao ponto de partida.


Como Down, eu digo: a criança adormecida dentro de nós pode acordar e nos despertar. E o fará com sua inteligência leve e suave. E não pesada ou racional, como a dos adultos. Às crianças pertence o Reino dos Céus (Mt 19,14). A criança em nós é um chamado de alegria e ascensão. Como disse o profeta Isaías: “... uma criança pequena os guiará” (Is 11).


1 Colaborou na edição Evaristo de Miranda, pai do Daniel. Correio Popular, 12/10/2024 (proposto a publicação).

2 Youtuber, criador do Down News ( https://www.youtube.com/c/DownNews21 ) um canal de notícias especiais sobre as competências das pessoas com Síndrome de Down e seus relacionamentos, familiar, escolar, profissional, social e outros.

 

 

 

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terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

De passagem pela Índia o espanto é uma constante

Rinaldo Arruda    
Quando Richard me consultou se queria ir à Índia representando o richardjakubaszko.blogspot.com a convite da BKT, a multinacional indiana líder no setor de pneus para máquinas agrícolas e de mineração, achei que era brincadeira. Era sério, ele não podia ir, tinha outros compromissos. Nesse caso, aceitei na hora!


Viagem incrível apesar das quase 20 horas de voo até Mumbai, com escala em Dubai. A qualidade do convite da BKT logo se fez notar ao escolher a Emirates, excelente companhia aérea, de poltronas confortáveis mesmo na classe econômica e serviço de bordo com talheres e louça de verdade, impecável.


A Índia tem um bilhão e quatrocentos milhões de habitantes e Mumbai, sede da BKT e centro financeiro e de negócios da Índia tem cerca de 20 milhões.


A chegada ao aeroporto moderno e espaçoso já mostrou os rigores da segurança e a morosidade do serviço público. Filas e mais filas e vários pontos de checagem. Finalmente conduzido por funcionário da BKT que me esperava na rua em frente ao aeroporto, pois só entram neles os que forem viajar, penetramos na cidade por uma larga avenida, com os primeiros vislumbres da Índia e com contrastes que se mostrariam permanentes. A Índia é para os fortes!





Trânsito ordenado e ao mesmo tempo caótico na avenida moderna. Passando por tapumes intermináveis tampando a vista dos infindáveis casebres atrás, me confidencia o motorista: essa é a maior favela da Índia. Os tuk tuks e carros buzinando o tempo todo e as motos com um, dois, três e até quatro passageiros, a maioria sem capacetes, completavam o cenário. A cidade toda em obras, de novas linhas de metro, de longuíssimas pontes que pretendem ligar a cidade às suas 7 ilhas próximas, de renovação urbana infindável. Chamava atenção a disputa entre a modernidade do que se construía e a aparência degradada de quase todas as edificações de passagem.

  

O hotel Tridente Nurimar, de frente ao mar, maravilhoso. Na entrada, portões de metal e guardas armados, detector de bombas e artefatos passado por baixo do carro, entrada autorizada. Desço do carro e já passo por outra barreira, como de aeroporto. Bagagens escaneadas na esteira, passe por esse pórtico sem nada de metal com você.


A partir daí eram as mil e uma noites: moças indianas de roupas típicas oferecem uma limonada salvadora naquele clima quente, com uma delicada tijela de pó vermelho pedem licença para marcar seu chacra na fronte e logo me encaminham para meu apartamento em andar alto e vista próxima da cidade e do mar em frente.

  

Saio depois de duas horas de sono reparador e é fim de tarde no passeio ao longo da costa.


Multidões apreciando o entardecer e a vista da cidade banhada de sol, com os poucos turistas quase despercebidos na população majoritariamente indiana.


Dia seguinte começou a maratona


Voamos cedo para Buhj (4:45 am), todos os 128 convidados na entrada do hotel, visitar a planta fabril da BKT, lotamos o avião! Ônibus moderno com ar condicionado, demorada passagem pela segurança no aeroporto, uma hora de voo e chegamos.


Até aí tudo lindo, o choque foi a visão do caminho até a fábrica da BKT. Muita sujeira nas ruas, estradas, casas, animais soltos, visão desoladora contrastando com a gentileza das pessoas, com as lindas roupas das mulheres indianas e os típicos caminhões adornados e coloridos.

  



Hospedados na White House, alojamento da BKT, nesse dia e no próximo tivemos a oportunidade de ver de perto as instalações de ponta da fábrica, já descritas em post anterior ( https://richardjakubaszko.blogspot.com/2023/02/bkt-uma-empresa-da-india-do-seculo-xxi.html ).

 
A surpresa ficou para a recepção da noite. Era aniversário de Arvind Poddar, o fundador e CEO da BKT e fomos levados à um banquete, antecedido por várias apresentações de dança moderna e tradicional indiana assim como de maravilhosos músicos da Índia, nesse local incrível da foto abaixo, a arena Bageecha, no interior da planta fabril, de uso para eventos.

   


Dia seguinte voltamos para Mumbai e no próximo visitamos duas propriedades rurais em Surat, desta vez de trem, desafiando o deslocamento entre as multidões indianas.

 





Esperava ver uma grande propriedade agrícola com o uso de maquinário pesado, típico dos consumidores dos pneus BKT. O que vimos, porém, foram duas pequenas propriedades de cerca de 2 hectares cada. Uma dedicada ao plantio manual consorciado e orgânico de inúmeras variedades vegetais e outra ao plantio de flores de cores muito fortes, fruto de cruzamentos experimentais e bem sucedidos, tocados por uma família muito simpática, com a qual me fiz fotografar.

   



No último dia participamos com todos os 128 convidados, mais convidados e imprensa local de uma apresentação da BKT, seus novos lançamentos e suas perspectivas de futuro numa entrevista coletiva no hotel Trident Nurimar. Além da excelência, inovação e qualidade tecnológica da BKT vimos que ela está presente também nos espaços do Metaverso, com NFTs próprias a venda nesse mercado digital!


Check out e três dias de passeio por Mumbai

Agora hospedado num hotel de menos estrelas (por minha conta) isto me colocou em contato mais direto com o dia a dia da maior cidade da Índia. Regateios nos táxis, nas lojas, nas ruas, andanças nos dias encalorados, conversas soltas com taxistas e transeuntes, experimentações em restaurantes muito diferentes. Muita gente, buzinaço constante, mil coisas acontecendo simultaneamente no meio da multidão sempre em movimento.


Fui ao Crawford Market para comprar especiarias, depois visitas a inúmeras lojinhas para compras de roupas indianas e passeio de um dia às ilhas Elefanta, onde só se encontram macacos perto das imensas cavernas escavadas na rocha, com estátuas do panteão indiano e um lindo passeio de barco. Deu tempo para visitar a casa onde morou Gandhi quando passou uns tempos em Mumbai, e que hoje é um museu, depois assistir um ritual no lindo templo de Krishna, ir ao Portal da Índia, imenso monumento construído para comemorar a visita do rei inglês Jorge V e da rainha Maria, em dezembro de 1911, mas que só ficou pronto em 1924.





















Voltando para casa
E daí, depois desta semana que com tanta coisa acontecida, vista e sentida parecia que já tinha passado um mês inteiro, volta para o Brasil, também com suas fortes desigualdades, mas não tão populoso, nem tão barulhento. Como dizia minha mãe que adorava viajar, as viagens são ótimas, mas melhor ainda é voltar para casa!


O que achei da Índia? A resposta é lugar comum: maravilhosa, estranha, hiper moderna, antiquíssima, linda, feia de doer, muito rica e muito pobre, bagunçadíssima e ainda assim eficiente. Os indianos todos com os quais tive o prazer de conversar, com alguns tropeços por conta do inglês de sotaque no mínimo peculiar, sempre foram gentis, solícitos, amigáveis, me causaram ótima impressão. Culinária de dar água na boca e suor na testa pelo apimentado de tudo, um mundo imenso ainda a descobrir.


Saí onze da noite do hotel, depois de uma hora de carro em meio ao buzinaço rotineiro, fila de uma hora para entrar no aeroporto, mais uma de check in e mais duas para passar pela imigração, revista de bagagem etc. e tal, entrei na área internacional e consegui subir no avião! Parecia que a Índia não ia me deixar ir embora, engolido pela Ásia, esse continente tão antigo, tão moderno, tão diverso e tão cheio de contrastes.


Na chegada em São Paulo 20 horas depois (ufa!), depois de uma escala de poucas horas em Dubai, passo numa alfândega super rápida com meu passaporte de leitura eletrônica, free shop para um vinho para o Richard e saio num saguão e cidade que me pareceu muito silenciosa e organizada, São Paulo!

 

 

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sábado, 4 de fevereiro de 2023

Não era dia da onça beber água

Rinaldo Arruda  
Há muitas histórias sobre onças acontecidas com os que vivem nas matas.

Balduíno contou que, de certa feita, caminhando no mato indo da aldeia da Beira Rio para a Aldeia do Tapema, se deparou com rastro de onça atravessando a trilha. Era rastro fresco e como era próximo da aldeia, resolveu seguir o rastro e ver onde ia a onça e até quem sabe, se fosse em direção às proximidades das aldeias, avisar o pessoal.

Saiu da trilha seguindo os rastros, lentamente sem fazer ruídos, caminhou uns cem metros ... o caminho da onça fazia uma curva como que se estivesse voltando na direção oposta... andou mais um pouco seguindo as patas da onça e, de repente, estalou uma pisada nas folhas secas uns 10 metros atrás dele. Quando se voltou, viu que uma onça preta o seguia enquanto ele seguia os rastros dela. Atirou rápido com sua espingarda, conseguiu ferir fatalmente a onça, escapando de um ataque que ela armava contra ele.


Foi assim. A onça percebeu que era seguida, fez a volta e passou a seguir o perseguidor, por isso a trilha da onça fazia aquela curva estranha como se ela voltasse para a direção de onde vinha vindo.


O Vicente, quando morava na aldeia do Barranco Vermelho, quase foi morto por uma onça pintada. De dia ele havia escavado um poço, já com uns 3 metros de fundura, perto de sua maloca. Trabalhou nisso o dia inteiro, de tardezinha banhou-se no rio Juruena, voltou para casa, jantou, papeou com a mulher e os filhos, foram dormir cedo. De madrugada, ainda escuro, saiu para mijar, se afastou um pouco da casa e foi urinar perto do poço. Do nada saltou uma onça pintada sobre ele. Desviou, mas tomou uma patada que rasgou seu braço, esquerdo. Ela veio de novo e, no encontrão, empurrou/socou a onça que, por muita sorte dele, escorregou na beira e caiu no fundo do poço, sem conseguir sair. Foi só ir até em casa pegar a arma e matar a onça ali dentro mesmo.


E depois da história vem as conversas. Mas, era onça mesmo? Como assim? - perguntava eu.


O corpo era da onça mas podia ser um Rikbaktsa falecido querendo se vingar, enciumado e invejoso dos vivos.


Quando alguém desse povo morre, todos seus parentes vem para o funeral, seja os do lado do seu clã, do mesmo sangue do seu pai, seja do lado do clã oposto, o da mãe, que são os parentes por casamento. Assim que uma pessoa morre, vai um emissário para todas as aldeias e chega cantando na frente das casas, anunciando a morte do parente. Logo todos se arrumam, com as pinturas faciais de cada clã, vestindo seus cocares de funeral, levando suas armas e seguem para a aldeia do falecido.


Na aldeia do falecido, seus parentes mais próximos já juntaram comida da roça, carne de caça ou peixe, fizeram chicha para beber, as mulheres já estão chorando ritualmente, e cada comitiva que chega das outras aldeias já sai das canoas em fila (ou do barco com motor de popa) cantando/gritando/chorando, e dirigem-se para onde o corpo está sendo velado.


É bem impressionante aquela onda de emoção das mulheres chorando, som contínuo e ritmado, os homens brandindo as armas falando/gritando. Tudo é posto para fora, as mágoas deixadas pelo morto, as culpas reais ou presumidas de cada um, tudo de bom e ruim que pensavam do morto e depois de umas horas dessa catarse, tudo pisado e repisado, tudo fica limpo. O morto é enterrado com seus pertences pessoais, seus pertences outros são queimados e por um bom tempo não se pronunciará mais seu nome. Sua casa será desmanchada e a mulher e os filhos rasparão a cabeça e mudarão para outra casa ou outra aldeia.


Quando esse funeral é bem feito, de acordo com a tradição e com sentimentos verdadeiros, o falecido ou falecida encontra o caminho para o paraíso Rikbaktsa e lá reencontra seus ancestrais na aldeia do “céu”, onde há muita fartura, muita mata, água farta e límpida e todos vivem bem.


Mas, quando o falecido era uma pessoa que em vida fez muitos mal feitos e, principalmente, quando a pessoa era sovina, não era solidário, nunca retribuía o que ganhava dos outros seja da roça, caça ou peixes, sem nenhuma generosidade, o funeral nunca era bem sucedido, seja por que as pessoas não conseguiam ter a atitude interna certa, seja por que era tudo feito “mais ou menos”. Sendo assim, o espírito do morto não acha o caminho para o “paraíso” e fica vagando por perto, com raiva e ciúme dos vivos. Nesses casos, o espírito encarna numa onça, ou numa cobra venenosa, em qualquer animal perigoso que ataca os seres humanos. Então, parece onça, mas não é onça...


E aí, em maio de 1988, mais ou menos, eu estava de novo no país dos Rikbaktsa, lá no rio Juruena. Estava hospedado na escola da Aldeia da Primeira Cachoeira mas a festa grande deste ano estava sendo na aldeia Pé de Mutum, uma das primeiras festas grandes na Terra Indígena Japuíra.


Os Rikbaktsa tinha sido transferidos, expulsos, dessa parte de seu território tradicional na época em que morriam das epidemias causadas pelos primeiros contatos com os brancos. Mas, agora, essa terra tinha sido recém reconquistada pelos Rikbaktsa numa luta dura, no terreno e na justiça, sendo reconhecido seu direito à Terra Indígena Japuíra. Pé de Mutum veio a ser a primeira e maior aldeia dessa terra indígena, fundada por Geraldino Matsy, sua parentela e aliados. A festa grande era lá esse ano.


Foi muita gente nessa festa e em outro momento eu conto como ela é. Saímos da aldeia da Primeira Cachoeira numa voadeira bem cheia de gente. Barco para seis pessoas levava onze e mais o rancho e as tranqueiras (rede, armas, roupas etc.) de todos.


Muitas horas de viagem descendo o rio Juruena, passamos pela foz do rio do Sangue e seguimos adiante. Saímos cedo, fomos parando em outras aldeias no caminho para um papo e comer alguma coisa, sempre ofertada em qualquer casa que alguém vá. Já no meio da tarde, ao passar por uma das ilhas do rio, de repente salta para a água uma enorme onça parda. O piloto da voadeira mudou o rumo, indo direto em direção a ela que passou a nadar rapidamente tentando alcançar a margem do rio.


No barco cheio eu estava no proa, bem no bico da voadeira e a única espingarda, uma winchester 22, estava bem ao meu lado. Naquela perseguição bizarra, voadeira chacoalhando nas águas agitadas do rio, caçando a onça que fugia e parecia que ia alcançar a margem, ao ver que a arma estava bem a meu lado, todos passaram a gritar para que eu atirasse, logo!


- Atira Rinaldo! Atira, rápido, ela vai alcançar a margem.

- Atira Rinaldo! Atira! Agora!


Onça linda, majestosa na força de seu nado no grande rio, já há uns 10 metros da margem, rio encachoeirado, barco pulando, onça nadando, encostei a winchester no ombro, mirei e, sem muita esperança, premido pelos gritos, atirei. De imediato, num momento congelado na minha mente, a onça parou de chofre, braços abertos, cabeça mole afundando na água.


Havia acertado na nuca, morte imediata. Nem acreditei. Meio triste por ter acertado bicho tão lindo, e perigoso.


Quando alguém mata um bicho, é o outro que carrega e depois divide com os da aldeia. Então, dei a onça para Salvador, irmão do Geraldino, do clã da Arara Amarela, o mais velho da voadeira.


Sua cabeça foi cortada e depositada no banco da voadeira, ao lado de Salvador, voltada para a frente, de olhos abertos. Companhia surrealista de viagem, aquela face de onça, cabeça grande, como que sentada junto conosco, no resto da viagem. Meio assombroso...


Na chegada causou espanto, e a história foi contada muitas vezes para o pessoal que estava na aldeia.


De noite, lua cheia majestosa pairando sobre o rio e a aldeia, deixando tudo claro, fazia até sombra e a água do rio brilhava. O fogo foi aceso na frente da casa de Geraldino, o fundador da aldeia, panelão de água fervendo onde foi colocada a cabeça da onça, por bastante tempo, até amolecer e permitir a retirada dos dentes caninos, enormes e potentes.


O espírito da onça fica ali, no interior dos dentes caninos, dali ela tira sua força e potência. Os dentes foram furados na sua base pelos companheiros do clã oposto, no caso pelos que eram do clã dos Harobiktsa (arara cabeçuda, um tipo de arara vermelha), num trabalho cercado de cuidados para que os dentes não rachassem deixando o espírito escapar. Enquanto isso, outros também do clã Harobiktsa, teciam com tucum os fios para passar pelos furos e constituir o colar. Salvador usou esse colar até seu falecimento, em 2018.


Mas, de tudo isso, ficou até hoje na minha mente o aviso que Salvador me deu, satisfeito com o colar no pescoço e me agradecendo pelo presente:

- De agora em diante tome cuidado ao andar no mato. Você matou a onça, e agora todas elas sabem disso, podem querer se vingar de você. Fica esperto no mato!


- Ô Salvador, podiam ter avisado antes de eu atirar, né, respondi meio na brincadeira.

Mas, levei a sério o aviso, fico sempre esperto ao andar na mata.


Salvador, 1988 Foto Rinaldo Arruda

 

 

 

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