Carlos Eduardo Florence *
Deu-se nos tempos devidos, aberto cerimoniosamente e com consenso o evento ecumênico aguardado, muito discreto, sem arroubos ou pretensões, na grata finalidade de desmistificar pontos obscuros sobre o conflito milenar, na realidade fictícia. Tal não poderia deixar de ser reforçado pelos liberais bem intencionados, sobre os suportes históricos e reais à civilização, da sinergia milenar entre religião e ciência.
A teologia e as teorias científicas, engajadas e articuladas pelos homens de mentes e corações amplos, despidos de preconceitos, tanto como de radicalismos, os quais convergiram sempre no princípio inabalável da criação do universo por Mãos supremas, na coerência das interações indiscutíveis.
Deus, portanto, criou o abstrato e o concreto, antes de impregnar os ungidos existenciais com múltiplas e adequadas composições alternativas de pragmatismo. Calibrou-os com exatas porções de espírito, alma e cérebro, dosagens perfeitas, indispensáveis, com aptidões específicas, dando-lhes plena autonomia nos procedimentos, livre arbítrio, dentro dos seus contextos singulares, como melhor lhes aprouvesse.
Estes detalhes são fundamentais para o entendimento da dimensão da criação sublime. E é neste complexo que a centopeia, mesmo incrédula, recebe discernimento sustentável para movimentar cem minúsculas pernas e não tropeçar, no entanto não consegue calcular o resultado de dois mais dois e nem se preocupar com a necessidade destas excentricidades inúteis. Em contrapartida, Deus gratificou ao homem com o imenso poder de aprender as verdades bíblicas, calcular a velocidade da luz, compor a oitava sinfonia, escrever Grandes Sertões e Veredas, constatar a teoria da relatividade, mas não o agraciou com leveza apropriada para confrontar a gravidade e muito menos despregar-se do solo raso como proveu, aleatoriamente, favorecer ao condor, de forma tão bela e independente.
Estas alternâncias são um só complexo indivisível, mesclando nesta melodia sutil da natureza, simples e lógica, que nos amaina, toda a dimensão incomensurável do Criador, reverenciada pelos verdadeiros sábios. Tais esplendores de integrações não caberiam desunirem-se, nos ritmos e modos como Deus criou o perfeito e o incomensurável. Não assim fosse, a harmonia se esfacelaria entropicamente e o caos prevaleceria sobre a ordem, o destino e o cosmos.
Solvido este mero introito das composições indiscutíveis e apaziguadas acima, passa a ser nosso objetivo recuperar dados antropológicos e teológicos obtidos em escavações nas áreas centrais desérticas do Atriscaitãn. Os reduzidos e quase exterminados nativos desta região extremamente árida, os Eleumérios, oriundos de Eva e Adão após o casal ter sido desalojado de um paraíso fantástico, do qual não sobrou referência ou detalhe e inclusive os descendentes evitam memorar detalhes desconfortáveis, por motivos morais, éticos e atávicos. Constatou-se serem os herdeiros detentores únicos destes fatos indiscutíveis, após a transformação divina do nada em ser.
Portanto, é o primeiro clã eleito, escolhido pelo criador. Estes conhecimentos confirmados, respeitados e seguidos pela religião e ciência são irrefutáveis, pois nascem dos legados do primevo casal. Deus deu, a saber, a estes privilegiados, que antes de lapidar os contornos e acabamentos caprichosos nas criaturas e nos relevos todos dos aléns e escolher a terra como fruto simbólico do seu imenso amor por ela e seus ocupantes de todas as naturezas, experimentou várias formas, anteriores, primitivas e diferentes de complexidades alternadas, primárias, embrionárias e provisórias.
Apesar de toda a onisciência, Deus no início, ainda principiante na arte criativa, entrelaçou varias substâncias, embora imaginadas e criadas sós por ele, etéreas e desuniformes, cujos resultados pragmáticos não o agradavam. Com tenacidade eterna e divina recomeçava outra vez sempre e sistematicamente.
Estes detalhes, levantados, ocorreram muito antes daqueles quinze bilhões de anos humanoides do referido Big-Bang, com os quais o Criador não comunga nas fantasias descritivas dos conceitos atuais. Tanto assim que as desaprova, a bem da verdade, sorrindo benevolente, pois milenares medidas perdidas em tempos divinos são completamente diferenciadas das astrologias temporais arbitrárias, pagãs e primitivas dos homens, que mal se suportam em razão das deturpações tópicas, com suas ficções barrocas ou rococós, mistificações tempestivas desmerecendo os astros, buracos negros, anos luzes, galáxias, os sois, estrelas e coisas que tais.
Imaginações ingênuas dos mortais medíocres, descrentes, limítrofes, que não possuem alternativas mais criativas. Os sete dias da criação do cosmos, modestamente admitidos como espaço e dilação suficiente para a criação do incomensurável existir, jamais refletem, pela complexidade criativa divina, o banal acender e apagar do sol que delimita o transcorrer do dia pobre e antropológico. O proceder de esta epopeia ímpar e suprema é meticulosamente medido em espaços de milagrosas luzes atemporais, tanto que cada micro de átimo tempestivo Divino se respalda em concentrações inconstantes de metamorfoses, fruto de reflexos-reflexivos irrequietos organicamente, resistentes a tridimensionalidade e aos movimentos estacionados. São padrões impraticáveis de constatação dos mortais dada as limitações a estes impostas, mas confirmadas empiricamente pelo simples fato de existirem e se contemplarem em todos os seres, inclusive o homem.
Estas metamorfoses atemporais são subdivididas em desejos próprios da sensibilidade momentânea do Criador, que se estendem, aleatoriamente entre o nada, partindo do invisível, juntamente com o inimaginável, respaldado no pretérito e sem nenhum conflito com o porvir. Fundamental estes conceitos, pois partem desde os milionésimos de milagretes insipientes, subdivisão de nanoelocubrações concretas, mas sempre instáveis divinamente, até infinitesimais super-escalas inatingíveis pelos cógitos mentais convencionais.
Os Eleumérios, escolhidos descendentes de Eva e Adão, detiveram, por muito curto período, o privilégio de decodificar estes calendários e tomar ciência das combinações com as quais Deus dosava e media as matérias primas produzidas para suas experiências pré-cosmológicas. Mas, por precaução e receio, os Eleumérios esconderam estes tesouros dos conhecimentos sagrados ontológicos em profundas cavernas nos rincões dos Inconcebíveis, ao fundo inacabado do deserto de Atriscaitãn, para não caírem em mãos desconhecidas e indefinidas. Estes estranhos usurpadores intentavam, ao que se colheu dos imemoriais, com as argamassas e amalgamas extemporâneas divinas, criar outro evento existencial paralelo, competitivo e materialista. O Senhor inventou, habilidosamente como sempre, o esquecimento e impregnou-o sabiamente na mente ingênua dos Eleumérios, como precaução.
Os fatos acima não são detalhes, nem questões de somenos. Como se acompanhou, infelizmente, destes ensaios anteriores restou micro sinais e muitas desinformações esparsas. A bem da verdade muito mais se especula sobre os mesmos do que se pode constatar. A maior dificuldade de restauração dos fatos, concretudes ou abstrações, destas comunicações pretéritas dos seres de Artochoi Orum, como Deus denominou o seu complexo anterior experimental, são os conflitos de então entre o paradoxo, o subjetivo e a fantasia desconhecidos pelos videntes, clérigos e cientistas atuais. Mas algo diminuto sobreviveu e outro tanto é suposto.
Deus não consolidara ainda o termo universo e nem o homem então, portanto, não se permitiu denominar a provisória Artochoi e seus atributos com estes substantivos próprios. Nesta experiência divina, extinta, a comunicação dos entes era intelectiva. Realmente se interligavam estes seres pré-universo, então criados com partes espirituais e outros tantos complementos materiais, proporcionais a cada criatura, desde as mais primitivas, até as mais desenvolvidas e sofisticadas, através de ondas cerebrinas.
Os inanimados, neste complexo anterior e experimental, emitiam por mini-sensores mentais mensagens objetivas, capazes de descodificarem as subjetividades e os concretos, intercalados dos signos dos seus propósitos corpóreos para afetarem os correspondentes usuários. Não correspondiam, estas oscilações comunicantes, aos limitados efeitos ofertados aos seres vivos em nosso universo como o calor, fala, visão, cor, cheiro, paladar, sabor, perspectiva, olfato, reflexo, mas agiam diretamente no imaginário dos cógitos dos seres para os atraírem, repelirem, agradarem, subsidiarem, imantarem ou convencê-los.
Os próprios inanimados, neste contexto, possuíam a capacidade reprodutiva (como uma convencional pedra, por exemplo, parir pedregulhos sutis e delicados que cresciam e se ofereciam, reprodutivamente, aos consumidores ou uma amêndoa que devidamente devorada, multiplicava-se em várias castanhas mimosas).
Assim se invertia a dialética, quanto mais eram absorvidos pelos seres animados, os inanimados se proliferavam e os primeiros se volatilizavam pelo além para se transformarem em contemplativos adoradores. Passavam em júbilos desmaterializados a contemplarem o esplendor infinito do nada ao lado do Criador. Os espíritos mais adiantados e soberbos se postavam orgulhosamente a montante do Silêncio Soberano e mais próximos da Paixão infinita, em contrapartida, quanto mais primitivo, maior a distância do Eterno. Este privilégio de ladear o Senhor se estendia por graúdos nacos enormes existenciais de átimos milagrosos enrolados em faixas enormes de nada delicadas.
Aqueles seres então possuíam sua dimensão material e o respectivo e adequado complemento espiritual, alma ou mente expressiva comunicante. O original da espécie apresentava a habilidade de as matrizes sólidas, o corpo, liberar a substância volátil, a alma, para esta ao bel prazer tresandar alhures como bem lhe aprouvesse. Seria como atualmente o intelecto ou espirito humano passear pelos arredores deixando o corpo entretido em outros detalhes existenciais.
Um dos problemas recorrentes neste contexto moto-tresandante, articulado por Deus aos indivíduos, era que em certas circunstâncias acidentais, elas se desorientavam nos espaços desconexos ao intentarem regressar a sua própria matriz corpórea deixada ao dará. Não era incomum se confundirem as almas espirituais circulando pelos aleatórios e, desorientadas e perdidas, as vagantes desajustadas ocuparem espaços físicos alheios vazios.
Estes desatinos provocavam atritos de locação, além de problemas sérios de sexualidade, transexualidade, ciúmes, anseios e infiltrações conflitivas. Também ocorriam acidentes, não incomuns, de uma única matéria corporativa receber dois afetos espirituais simultaneamente e disputando a mesma vaga. Ou outra ficar, neste contexto, carente de vivência espiritual. Foi quando Deus, observador e atento, descobriu a esquizofrenia, achou este propósito material didático, interessante, e deteve restolhos apropriados para encarnar em um futuro indefinido.
Outra experiência desta antologia cosmológica primeira, que frustrou o Senhor nesta sua fase experimental foi a irrelevância atribuída por Ele à gravidade naquele contexto anterior. O aforismo atual que: “matéria atrai matéria na razão direta proporcional à massa e inversamente proporcional ao quadrado das distâncias que os separa”, considerou o Criador desnecessário e preferiu não introduzir em Ortochoi Orum.
Depois de lançar os compostos todos criados no contexto de então e passar a observá-los como agiam sob o despautério da ausência de gravidade, pasmou-se dos detalhes paradoxais. O que poderia parecer facilitar a locomoção e transporte se tornava exaustivo, pois se imaginara que poderiam ser utilizados contrapesos específicos para os objetos se atraírem e se movimentarem. Mas também estes se espargiam aleatoriamente ao sabor da densidade do nada, não tinham como retornar aos destinos e passaram todas as espécies, desde os mais evoluídos seres aos mais primitivos, a sofrer de depressão e agorafobia.
Exausto, pensativo, contrariado, Deus, por último, se pôs em meditações divinas profundas, por uma série interminável de átimos milagrosos indeterminados e contemplativos. Muitos infindáveis milagretes posteriores, sem mais devaneios, desmantelou os restolhos de Ortochoi, desfez peça por peça, anotando os resquícios do evento, na maioria das vezes, em sua memória privilegiada somente. Com parcimônia, retrocedeu tudo cuidadosamente ao nada, tomando a decisão divina de salvaguardar somente algumas mudas de substâncias esquisitas e raras em Ortochoi para, eventualmente, em algum além-desconhecido usá-las para enxerto, semente ou procriação.
Conta-se, portanto, nos alfarrábios escondidos dos Eleumérios na caverna dos Inconcebíveis, que escapou no cesto divinal do infinito atemporal, resíduos de migalhas de amor, mínimos desejos em botão, uma cunha cheia de mentiras, pitadas de desafetos em bons estados de conservação, um chorrilho de ciúmes para contrabalançar amor excessivo, inveja em doses razoáveis, ambição pouca para não se tornar desmedida, duas cabaças rasas de preguiça e meia de sono, um desafeto urinando ainda em suas fraldas e outras malvadezas de pouca utilidade, mas em bons estados de uso, para, com estes restados, se O aprazasse, praticar novas experiências em algum talvez esquecido e distante, após infinitesimais átimos de milagres quaisquer de futuros imprevistos e incertos.
Derradeiro e magnífico, desiludido pelos conflitivos paradoxos de Ortochoi, embora muito antes de elucubrar seu próximo e último arrependimento, o universo atual, sem trauma algum, recostou-se sobre uma extensão serena e confortável do mais macio nada. Escolhera este além entre as indefinições aleatórias, onde se sentia tranquilo, e atentou os ouvidos eternos para espairecer, merecidamente, com o choro angelical, distante, de trompetes e flautas que o repousava tanto.
Enquanto isto lançava, Ele, aos horizontes ocultos suas profecias, prevendo achegarem cansados pelos caminhos desconhecidos o futuro e a incerteza para recompô-los em atualidades presentes e realidades concretas. Tudo se dava pelos cantos dos infindáveis ruídos dos silêncios, pois só Deus poderia antever que a angústia seria criada por Ele próprio e assim transmudar o imenso nada abundante em céu, terra e, caprichosamente, inventar o homem para aprender a sofrer e merecer, no fim, a usufruir da extrema alegria angustiante da morte.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado em: http://carloseduardoflorence.blogspot.com/2019/11/eleumerios-doatriscaitan-e-outras.html
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