segunda-feira, 13 de julho de 2020

Assim lucram as empresas farmacêuticas com as pandemias: “Vendem por 2.000 euros medicamentos que valem seis”


José Carmona

A pandemia irá ter um dramático impacto econômico e social, com previsíveis enormes quebras na produção e no consumo. Mas o setor da indústria farmacêutica vive uma idade de ouro: vende o que produz a preços exorbitantes, e impede que outros produzam os medicamentos essenciais cujas patentes monopoliza. Se a medicina privada é um escândalo de violação do direito universal à saúde, a indústria farmacêutica privada é um escândalo ainda maior.

O coronavírus já cobrou mais de meio milhão de vidas em todo o mundo, enquanto as empresas do setor farmacêutico impõem preços abusivos aos medicamentos que poderiam travar a escalada de mortes.

O surgimento do antiviral Remdesivir, o primeiro medicamento destinado a aliviar os efeitos do coronavírus, gerou um intenso conflito depois de Trump ter comprado praticamente o total da produção dos próximos três meses, iniciativa que deixou meio mundo desabastecido. Nos EUA, cada paciente deverá desembolsar até US$ 2.000 por tratamento, apesar de o medicamento ter um custo de produção de cerca de seis. Se as máscaras já provocaram uma guerra comercial internacional, até onde poderá levar a luta pelas doses para curar a pandemia?

Originalmente, e com outro nome, o Remdesivir nasceu após uma investigação desenvolvida para combater o Ebola em 2013. Ao demonstrar menos eficácia do que outras drogas caiu no esquecimento, mas com a pandemia do covid-19, Gilead, a farmacêutica que o criou, fez testes para ver que resultados obtinha. Inesperadamente, tornou-se o primeiro medicamento aprovado pela União Europeia para combater o coronavírus.

A indústria farmacêutica sempre esteve sob suspeita pelos seus enormes lucros e por gerir o seu negócio no caminho intermediário entre a saúde e o lucro privado. Basta ver Sicko, o documentário dirigido por Michael Moore, para confirmar a triste realidade dos cuidados de saúde, mercantilizada até ao tutano em muitos países do mundo. Pela mão do realizador, um punhado de norte-americanos atravessou as escassas milhas que separam os EUA de Cuba para descobrir um sistema em que a assistência médica pode ser totalmente gratuita para os cidadãos.

Os gastos públicos com produtos farmacêuticos aumentaram na Espanha para os 18.709 milhões, mais de 4% em relação ao ano anterior.

Os medicamentos são caros, seja quem for que os pague. Os países que dispõem de Segurança Social ou de saúde pública evitam que os seus cidadãos acabem hipotecados para poder salvar a vidas, mas constatam em contrapartida como os gastos aumentam cada ano, para níveis quase insustentáveis, porque a indústria farmacêutica tem total liberdade para fixar os preços de venda. Em Espanha, durante 2019, os gastos públicos com produtos farmacêuticos subiram para 18.709 milhões, mais de 4% em relação ao ano anterior, segundo dados da Associação por um Acesso Justo ao Medicamento.

Ramón Gálvez, neurologista e diretor-gerente durante oito anos do Serviço de Saúde Castilla-La Mancha (Sescam), define a data de origem desta deriva neoliberal: “A indústria farmacêutica mudou em 1975. A Organização Mundial do Comércio (OMC) definiu que os medicamentos estavam sujeitos a patentes. Isso permite que a empresa que consegue produzir um medicamento inovador dispõe de pelo menos 20 anos de exclusividade para a sua exploração. Durante esse período, a empresa pode definir o preço que deseje”. Até então, os medicamentos nunca tinham sido registrados sob patentes. Em Espanha, a aplicação dos regulamentos é de 1985, entrando totalmente nessa dinâmica em 1989.

A medida, pensada para que durante esses anos a empresa farmacêutica recuperasse o investimento em investigação e obtivesse lucro, colidiu totalmente com certas crises de saúde pública. “Na África do Sul, durante um surto de HIV por volta de 2000, com centenas de sul-africanos afetados, foi descoberto um tratamento eficaz com base numa combinação de três fármacos, inacessível pelo preço. Isso provocou protestos a que até Nelson Mandela compareceu. Perante essa situação, o governo alegou razões de saúde pública e retirou a patente ao laboratório Novartis para poder produzir este medicamento como genérico e oferecê-lo a um preço acessível”, lembra Gálvez. A medida, apesar de honrosa, teve repercussões, uma vez que a empresa farmacêutica lançou em pleno contra o executivo sul-africano: “Quase metade dos advogados do país acabaram por trabalhar para a empresa farmacêutica para indenizar a Novartis”. A Justiça deu razão à Administração.

Desta forma, os países africanos abriram um caminho que poderia ser continuado por muitos países fustigados pela covid-19: as chamadas licenças compulsórias. Os governos – entre os quais o de Espanha - podem solicitar a patente à empresa farmacêutica que tenha a exclusividade de um medicamento para o produzir e reduzir o seu custo, sempre que se justifique uma “falta de exploração ou a insuficiência em qualidade ou quantidade da exploração realizada que implique sérios danos ao desenvolvimento econômico ou tecnológico do país“, segundo o Gabinete Espanhol de Marcas e Patentes (OEPM). O executivo de Netanyahu em Israel aplicou essa mesma legislação em março passado para poder distribuir um medicamento que combateria o coronavírus. Ou seja, os Estados têm a legislação a seu favor para impedir que se produza um negócio à custa do vírus surgido em Wuhan.

Lucro e estratégia
A pandemia do coronavírus colocou em destaque o conflito gerado pelo lucro através da venda de medicamentos. Numa altura em que o número de mortes aumenta todos os dias na ordem dos milhares, a frivolidade de saber que a pandemia só terminará nos países que possam pagar as despesas impulsionou uma mudança de consciência sobre as dinâmicas dessa indústria.

Vanessa López, diretora de Salud por Derecho, encontra na polêmica sobre o coronavírus e o Remdesivir nada mais que um reflexo de práticas já comuns: “É a forma habitual de funcionamento o modelo de investigação biomédica. Casos como o atual recordam-nos o que sucedeu com medicamentos contra a hepatite C, com imunoterapias contra o câncer ou os tratamentos para a Aids. É um problema não resolvido. A história dos preços altos e das barreiras de acesso repete-se constantemente. É o funcionamento habitual, temos um sistema em que se retira lucros à custa do bem comum”.

Os especialistas consultados revelam algumas práticas com as quais as empresas farmacêuticas conseguem não perder a exclusividade da exploração de um medicamento. “Quando se adiciona uma nova indicação a um medicamento, podes modificar o preço e renovar a patente. Por exemplo, com medicamentos para leucemias, as empresas produzem-nos para um grupo muito pequeno de pacientes, pois dessa forma obtêm isenções fiscais, a produção é mais acelerada… Mas depois acrescentam-lhe novas indicações e dessa forma podem voltar a subir o preço e ampliar a patente“, diz Ramón Gálvez, que conta como as empresas farmacêuticas aplicam um critério - que considera injusto - para calibrar o preço de um medicamento: “Chamam-lhe o preço por valor. Não cobram pelo que custou investigá-lo, produzi-lo e distribuí-lo, mas pelo benefício que é obtido ao tomá-lo. Se produzir um prolongamento da vida, será valorizado esse aspecto, o que é uma armadilha. Então, se um médico opera uma criança com apendicite e lhe salva a vida, quanto teria de faturar? “, pergunta ironicamente o neurologista.

Ángel Huélamo, diretor de Farmacêuticos Sin Fronteras, encontra sintomas negativos em deixar tudo em mãos privadas: “Todos esses procedimentos refletem o arco, para o bem e para o mal, da problemática da indústria farmacêutica. Atualmente, existem cerca de 50 possíveis medicamentos para o coronavírus em fase de elaboração. Desses 50, nem 10% serão bem-sucedidos e haverá uma percentagem de investimento econômico perdida. Na Espanha existe uma lei de risco compartilhado, na qual, quando se investiga um medicamento, se houver contribuição pública, pode ser exigido à indústria que garanta um retorno social. O problema é que quando se deixa tudo em mãos privadas, se fica sujeito às leis do mercado.”

Que os medicamentos caminhem unicamente pela via privada é algo bastante habitual. Basta verificar os preços de alguns remédios. Nos EUA, um fármaco como o Revlimid, que trata a leucemia, pode atingir os US$ 20.000 por uma administração de apenas 30 dias, enquanto os medicamentos destinados a doenças raras, como a Luxturna, que trata um tipo de cegueira em crianças, pode rondar o milhão de euros.

Hepatite C em Espanha
O caso mais recente em que a Espanha se confrontou com a indústria farmacêutica ocorreu em 2014, com os doentes de hepatite C sem poderem ser abastecidos. Naquela altura, o tratamento mais eficaz consistia em interferol e antivirais, um tratamento exigente em que o paciente podia desenvolver muitos efeitos secundários.

Havia então uma pequena empresa norte-americana, Farmaced, que descobriu graças a financiamento público o Sofosbuvir, que se converteu no medicamento mais eficaz contra essa doença. No entanto, antes de o lançar no mercado, apareceu a Gilead e absorveu a empresa. O preço que escolheu para lançar o produto foi de US$ 84.000 por paciente e tratamento nos EUA, 40.000 euros em Espanha. Devido ao seu alto custo, o governo de Mariano Rajoy decidiu não dar esse tratamento a todos os pacientes, o que provocou um escândalo que quase levou Ana Mato, a ex-Ministra da Saúde, à Justiça. “O Sofosbuvir está a baixar de preço porque já existem antivirais. Agora não chega aos 8.000 euros, e sabemos também que a Farmaced gastou entre 50 e 80 milhões para terminar o produto, embora a Gilead tenha depois feito disparar o preço”, lamenta o médico ante este caso, em houve 4.000 pacientes que morreram sem poder receber tratamento.

As despesas do Estado

Em Espanha, onde a Saúde paga as despesas médicas de um paciente internado, o fato de as empresas farmacêuticas inflacionarem os preços implica um aumento dos custos a ponto de colocar em risco a manutenção social. “A evolução dos gastos farmacêuticos hospitalares com novos medicamentos é superior a 300.000 euros por tratamento; é o caso do Spinraza, um medicamento para a atrofia espinhal que, aliás, beneficia muito pouco e muito limitadamente os pacientes”, lembra Gálvez.

Vanessa López: “O custo mínimo de produção do Remdesivir é de US$ 0,93 por dose, cerca de uns seis euros por tratamento”.

“Desperdiçamos recursos com medicamentos que não deveriam custar tanto. Nos últimos anos, a fatura farmacêutica hospitalar cresceu cerca de 20%, enquanto os orçamentos de saúde diminuíram. É insustentável”, assevera Vanessa López. “Deixa-se que as empresas farmacêuticas tenham lucros abusivos. Os custos que dizem ter para desenvolver uma nova molécula ou medicamento não são reais. O custo mínimo de produção do Remdesivir é de US$ 0,93 por dose, cerca de cinco ou seis euros o tratamento. Sua venda ao público não tem de ser tão cara”, sublinha.

O aumento dos gastos derivado dos preços impostos pelas empresas farmacêuticas fez que, em 2018, a Catalunha aumentasse os gastos em mais de 550 milhões a despesa dos últimos cinco anos. Esse dinheiro, sem o constrangimento imposto por essas tarifas, poderia ter servido para contratar 11.000 profissionais de saúde, segundo Quico Puigventós, autor de “Medicamentos: direito ou negócio?”.

E no futuro, a vacina
Se apenas um medicamento já gerou toda essa controvérsia, o que acontecerá quando a vacina chegar? Poderá ser distribuída de forma livre e universal ou haverá um preço vertiginoso para cada paciente? Como Mike Davis narra em Llega el monstruo, “apenas doze empresas farmacêuticas fabricam vacinas antigripais e 95% da sua produção é consumida nas nações mais ricas do mundo”. As zonas mais pobres, que estão agora a enfrentar dados desesperantes sobre o coronavírus, com a Índia como principal foco do mundo, podem ficar totalmente à mercê dos caprichosos desígnios do mercado.

“Não pode ser nem é tolerável que a vacina tenha um preço que a torne impossível. Há que garantir que a vacina seja, se não gratuita, quase, e universalmente acessível. Tem de custar o que custe a sua produção, porque a investigação foi fundamentalmente pública”, afirma Ramón Gálvez com contundência.

Até López, diretora de Salud por Derecho, encontra uma mudança de paradigma após o trauma gerado por esta pandemia: “Existem países que já falam em controlar a propriedade intelectual, até a OMS criou um sistema em que, de forma voluntária, os centros de investigação depositaram os seus conhecimentos para gerar fármacos. A visão mudou; as pessoas estão conscientes dos problemas que uma pandemia coloca. Viram como é importante contar com uma vacina e que esta esteja disponível para todos“.



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Um comentário:

  1. Ola Richard,
    em alguns casos, nem 6 as drogas valem, teriam que ter valorizacao negativa pois causam problemas que o bolso publico paga. Alem dos escandalos recentes de estudos falsos sobre a HCQ, ha' mais escandalos emergindo em relacao a outros antivirais (ver ref). Enquanto isso ninguem fala das vitaminas e minerais e hervas que a vovo' usava...
    SDS
    Gerson
    ===
    LancetGate: “Scientific Corona Lies” and Big Pharma Corruption. Hydroxychloroquine versus Gilead’s Remdesivir
    By Prof Michel Chossudovsky Global Research, July 05, 2020
    https://www.globalresearch.ca/scientific-corona-lies-and-big-pharma-corruption-hydroxychloroquine-versus-gileads-remdesivir/5717718

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