Rinaldo Arruda
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Rio Juruena. Foto Rinaldo Arruda, 2018 |
Saímos para caçar de manhã cedo, Pudata estava com vontade de comer carne de macaco. Beirando o rio a partir da aldeia da Primeira Cachoeira, lá fomos nós pela trilha, desviando depois para o interior da terra indígena, em direção ao rio do Sangue.
- Mais lá pra frente é que eles andam, diz Pudata, as frutas estão maduras.
Íamos em silêncio caminhando, atentos aos ruídos da mata, evitando pisar em galhos caídos ou folhas secas, sem dar Pudata na frente levando o arco e flechas, eu atrás com a winchester 22. Rastros de porco do mato...
– Passaram por aqui já faz pouco tempo, diz Pudata. Cuidado...
Seguimos, tudo em silêncio, os animais também são prudentes. Vimos casa de jataí, marcamos o lugar para voltar outra hora, melzinho bom, medicinal.
Quando se sai para caçar, quem não conhece acha que vai dar de cara com algum animal e que será surpreendido. Mas, não é bem assim.
Cada bicho tem seu território, suas trilhas próprias, em geral indo de um ponto de alimento a outro (suas frutas preferidas que amadurecem no seu ritmo e estação do ano; ou os caminhos usuais de outros animais que podem ser suas presas).
Se depender só do olhar é muito raro dar de encontro com algum animal. É preciso saber ouvir, decifrar os sons da mata emitidos por uma miríade de seres diferentes. É um pássaro que canta? É filhote? Macho ou fêmea? É canto de acasalamento? É sinal de perigo? É a onça imitando a fêmea de uma ave para atrair seu macho? É o quatá macho que vigia e guarda o bando avisando de alguma coisa? E pelos sons, o mato vai se povoando, o contexto em que estamos vai se desenhando e vai definindo nosso rumo.
Saímos com intenção de matar quatá ou outro tipo de macaco, e assim Pudata resolveu levar só o arco e flechas. Quando se caça macacos, que andam em bandos e com um vigia enquanto o restante do grupo procura e come frutas pelo caminho, é preciso antes localizar sua rota, pelos barulhos que fazem no seu deslocamento e comunicação. E também, é claro, ter uma noção das fruteiras existentes e das rotas usuais que usam. Encontrado o bando, tem que ficar na espreita, deslocar-se lentamente e sem ruídos, até conseguir se aproximar do bando sem ser percebido.
Se o caçador usa arma de fogo o que acontece? O primeiro macaco ao alcance do tiro será baleado, mas com o barulho da arma todos saem em desabalada carreira pelo dossel das árvores, tornando difícil matar mais de um. A gente tem que sair correndo, varando mato, tentando segui-los até que parem por cansaço e daí conseguir de novo se posicionar próximo de algum deles sem ser percebido. E olha, eles demoram para cansar...
Por outro lado, se a arma é a flecha, silenciosa e mortal, o macaco ferido ou morto dá sinal de sua agonia, mas o bando não sabe o que aconteceu e nem localiza o agressor. Movimenta-se mas não sabe para onde fugir. Possibilita nova aproximação e nova caça.
Bem, mas andamos bastante e nada de localizar algum bando. Voltamos um pouco e resolvemos seguir os rastros dos porcos do mato.
Embora sua caça seja mais perigosa, é mais recompensadora, pela qualidade da carne e por sua maior quantidade. Mas, quando alguma fêmea está com filhotes o bando torna-se muito perigoso. Ao menor sinal atacam rapidamente o caçador que, se não conseguir subir rapidamente em algum tronco ou lugar mais alto, fora de seu alcance, será atacado e morto pelo bando. Mas, quando é bem sucedida, a caçada é recompensadora, é raro não voltar com mais de um porco para a aldeia. O duro é carregar os bichos no caminho de volta. Muitas vezes limpa-se o animal na mata mesmo, tirando seus órgãos internos, corta-se em pedaços menores e improvisa-se um cesto (xiri) com folhas de palmeiras trançadas para carregar para casa.
Pudata ouviu ao longe os sons de um bando de quatás! Fomos seguindo em sua direção e percebendo que eles também se deslocavam lentamente.
- Vamos atalhar por ali, diz Pudata, intencionando dar uma volta e espera-los mais à frente na rota que seguiam e aí surpreende-los já em posição de tiro quando ali chegassem.
Saímos da trilha e fomos varando mato até chegar num brejão, não muito fundo. Água e barro na altura da coxa, seguimos lentamente para não fazer barulho. Um tronco caído. Arlindo levanta a perna direita bem devagar para não chapinhar na água, passa a perna por sobre o tronco e quando a baixa dá um grito de dor e debate-se para livrar a perna. Quando vejo ele está se atracando com a sucuri que mordia sua perna, furando sua cabeça com a ponta das flechas que carregava na mão. Assim que deu retirou a perna e correu para trás, saímos rápido daquele brejo, fugindo da sucuri que, felizmente, ficou por lá.
Puta susto e um belo corte na batata da perna, sangrando. Fizemos uma atadura com a camiseta e fomos voltando, ele com alguma dor e dificuldade para caminhar.
Levamos duas horas para voltar para a aldeia. Lá chegando Maria Isabel, sua mulher, já o esperava preocupada: seu filho recém nascido (um mês) estava vomitando e com diarreia.
Quando sua mulher viu o ferimento e soube da história do ataque da sucuri entendeu tudo. Apesar de preocupada com Pudata ficou muito brava! O ferimento no pai havia agredido seu filho e provocado vômito e diarreia! O mal estar do bebê havia começado justamente por volta do momento em que Pudata foi atacado, ele mesmo reconheceu isso e ficou muito mal por ter provocado esse perigo ao bebê.
Os Rikbaktsa, povo que vive no rio Juruena, no hoje estado de Mato Grosso, sabem que um pai e seu filho compartem uma mesma substância espiritual que permeia seus corpos e mentes e fazem com que o que acontece com um reflete no outro. Por isso Maria Isabel ficou brava. Pudata deveria ficar de resguardo enquanto o bebê ainda é pequeno, idealmente até que ele completasse um ano, evitando certos alimentos considerados muito fortes, evitando o encontro com animais ferozes e situações de muito perigo. Tudo bem, ele pretendia apenas caçar quatás, mas andando no mato estava sujeito a tudo, a encontrar uma onça, uma cobra peçonhenta e até uma sucuri como ocorreu. Na verdade, nem deveria ter saído para caçar.
Por sorte o bebê logo se recuperou e Pudata também, a mordida não chegou a infeccionar embora o tenha incomodado ainda por alguns dias.
E assim, aprendi mais um pouco da vida e do mundo com o Arlindo e com os Rikbaktsa.
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ARLINDO PUDATA. Foto Rinaldo Arruda, 1987. |
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