domingo, 13 de fevereiro de 2011

Caí no mundo e não sei como voltar

Eduardo Galeano
O que acontece comigo é que não consigo andar pelo mundo pegando
coisas e trocando-as pelo modelo seguinte só por que alguém adicionou uma nova função ou a diminuiu um pouco…

Não faz muito, com minha mulher, lavávamos as fraldas dos filhos,
pendurávamos na corda junto com outras roupinhas, passávamos, dobrávamos e as preparávamos para que voltassem a serem sujadas.

E eles, nossos nenês, apenas cresceram e tiveram seus próprios filhos
se encarregaram de atirar tudo fora, incluindo as fraldas. Se entregaram, inescrupulosamente, às descartáveis!

Sim, já sei. À nossa geração sempre foi difícil jogar fora. Nem os
defeituosos conseguíamos descartar! E, assim, andamos pelas ruas, guardando o muco no lenço de tecido, de bolso.

Nããão! Eu não digo que isto era melhor. O que digo é que, em algum
momento, me distraí, caí do mundo e, agora, não sei por onde se volta.

O mais provável é que o de agora esteja bem, isto não discuto. O que
acontece é que não consigo trocar os instrumentos musicais uma vez por ano, o celular a cada três meses ou o monitor do computador por todas as novidades.

Guardo os copos descartáveis! Lavo as luvas de látex que eram para
usar uma só vez.

Os talheres de plástico convivem com os de aço inoxidável na gaveta
dos talheres! É que venho de um tempo em que as coisas eram compradas para toda a vida!
 

E mais! Se compravam para a vida dos que vinham depois! A gente herdava relógios de parede, jogos de copas, vasilhas e até bacias de louça.

E acontece que em nosso nem tão longo matrimônio, tivemos mais
cozinhas do que as que haviam em todo o bairro em minha infância, e trocamos de refrigerador três vezes.

Nos estão incomodando! Eu descobri! Fazem de propósito! Tudo se lasca,
se gasta, se oxida, se quebra ou se consome em pouco tempo para que possamos trocar. Nada se arruma. O obsoleto é de fábrica.

Aonde estão os sapateiros fazendo meia-solas dos tênis Nike? Alguém
viu algum colchoeiro encordoando colchões, casa por casa? Quem arruma as facas elétricas? O afiador ou o eletricista? Haverá teflon para os funileiros ou assentos de aviões para os talabarteiros?

Tudo se joga fora, tudo se descarta e, entretanto, produzimos mais e
mais e mais lixo. Outro dia, li que se produziu mais lixo nos últimos 40 anos que em toda a história da humanidade.

Quem tem menos de 30 anos não vai acreditar: quando eu era pequeno,
pela minha casa não passava o caminhão que recolhe o lixo! Eu juro! E tenho menos de ... anos! Todos os descartáveis eram orgânicos e iam parar no galinheiro, aos patos ou aos coelhos (e não estou falando do século XVII). Não existia o plástico, nem o nylon. A borracha só víamos nas rodas dos autos e, as que não estavam rodando, as queimávamos na Festa de São João. Os poucos descartáveis que não eram comidos pelos animais, serviam de adubo ou se queimava...

Desse tempo venho eu. E não que tenha sido melhor.... É que não é
fácil para uma pobre pessoa, que educaram com "guarde que alguma vez pode servir para alguma coisa", mudar para o "compre e jogue fora que já vem um novo modelo".

Troca-se de carro a cada 3 anos, no máximo, por que, caso contrário,
és um pobretão. Ainda que o carro que tenhas esteja em bom estado... E precisamos viver endividados, eternamente, para pagar o novo!!! Mas... por amor de Deus!

Minha cabeça não resiste tanto. Agora, meus parentes e os filhos de
meus amigos não só trocam de celular uma vez por semana, como, além disto, trocam o número, o endereço eletrônico e, até, o endereço real.

E a mim que me prepararam para viver com o mesmo número, a mesma
mulher, e o mesmo nome (e vá que era um nome para trocar). Me educaram para guardar tudo. Tuuuudo! O que servia e o que não servia. Por que, algum dia, as coisas poderiam voltar a servir.

Acreditávamos em tudo. Sim, já sei, tivemos um grande problema: nunca
nos explicaram que coisas poderiam servir e que coisas não. E no afã de guardar (por que éramos de acreditar), guardávamos até o umbigo de nosso primeiro filho, o dente do segundo, os cadernos do jardim de infância e não sei como não guardamos o primeiro cocô.

Como querem que entenda a essa gente que se descarta de seu celular a
poucos meses de o comprar? Será que quando as coisas são conseguidas tão facilmente, não se valorizam e se tornam descartáveis com a mesma facilidade com que foram conseguidas?

Em casa tínhamos um móvel com quatro gavetas. A primeira gaveta era
para as toalhas de mesa e os panos de prato, a segunda para os talheres e a terceira e a quarta para tudo o que não fosse toalha ou talheres. E guardávamos...

Como guardávamos! Tuudo! Guardávamos as tampinhas dos refrescos!
Como, para quê? Fazíamos limpadores de calçadas, para colocar diante da porta para tirar o barro. Dobradas e enganchadas numa corda, se tornavam cortinas para os bares. Ao fim das aulas, lhes tirávamos a cortiça, as martelávamos e as pregávamos em uma tabuinha para fazer instrumentos para a festa de fim de ano da escola.

Tuudo guardávamos! Enquanto o mundo espremia o cérebro para inventar
acendedores descartáveis ao término de seu tempo, inventávamos a recarga para acendedores descartáveis. E as Gillette – até partidas ao meio – se transformavam em apontadores por todo o tempo escolar. E nossas gavetas guardavam as chavezinhas das latas de sardinhas ou de corned-beef, na possibilidade de que alguma lata viesse sem sua chave.

E as pilhas! As pilhas das primeiras Spica passavam do congelador ao
telhado da casa. Por que não sabíamos bem se se devia dar calor ou frio para que durassem um pouco mais. Não nos resignávamos que terminasse sua vida útil, não podíamos acreditar que algo vivesse menos do que um jasmim. As coisas não eram descartáveis. Eram guardáveis.

Os jornais!!! Serviam para tudo: para servir de forro para as botas de
borracha, para por no piso nos dias de chuva e por sobre todas as coisa para enrolar.

Às vezes sabíamos alguma notícia lendo o jornal tirado de um pedaço de
carne! E guardávamos o papel de alumínio dos chocolates e dos cigarros para fazer guias de enfeites de natal, e as páginas dos almanaques para fazer quadros, e os conta-gotas dos remédios para algum medicamento que não o trouxesse, e os fósforos usados por que podíamos acender uma boca de fogão (Volcán era a marca de um fogão que funcionava com gás de querosene) desde outra que estivesse acesa, e as caixas de sapatos se transformavam nos primeiros álbuns de fotos e os baralhos se reutilizavam, mesmo que faltasse alguma carta, com a inscrição a mão em um valete de espada que dizia "esta é um 4 de paus".

As gavetas guardavam pedaços esquerdos de prendedores de roupa e o
ganchinho de metal. Ao tempo esperavam somente pedaços direitos que esperavam a sua outra metade, para voltar outra vez a ser um prendedor completo.

Eu sei o que nos acontecia: nos custava muito declarar a morte de
nossos objetos. Assim como hoje as novas gerações decidem ‘matá-los’ tão-logo aparentem deixar de ser úteis, aqueles tempos eram de não se declarar nada morto: nem a Walt Disney!!!

E quando nos venderam sorvetes em copinhos, cuja tampa se convertia em
base, e nos disseram: ‘Comam o sorvete e depois joguem o copinho fora’, nós dizíamos que sim, mas, imagina que a tirávamos fora!!! As colocávamos a viver na estante dos copos e das taças. As latas de ervilhas e de pêssegos se transformavam em vasos e até telefones. As primeiras garrafas de plástico se transformaram em enfeites de duvidosa beleza. As caixas de ovos se converteram em depósitos de aquarelas, as tampas de garrafões em cinzeiros, as primeiras latas de cerveja em porta-lápis e as cortiças esperaram encontrar-se com uma garrafa.

E me mordo para não fazer um paralelo entre os valores que se
descartam e os que preservávamos. Ah!!! Não vou fazer!!!

Morro por dizer que hoje não só os eletrodomésticos são descartáveis;
também o matrimônio e até a amizade são descartáveis. Mas não cometerei a imprudência de comparar objetos com pessoas.

Me mordo para não falar da identidade que se vai perdendo, da memória
coletiva que se vai descartando, do passado efêmero. Não vou fazer.

Não vou misturar os temas, não vou dizer que ao eterno tornaram caduco
e ao caduco fizeram eterno.

Não vou dizer que aos velhos se declara a morte apenas começam a
falhar em suas funções, que aos cônjuges se trocam por modelos mais novos, que as pessoas a que lhes falta alguma função se discrimina o que se valoriza aos mais bonitos, com brilhos, com brilhantina no cabelo e glamour.

Esta só é uma crônica que fala de fraldas e de celulares. Do
contrário, se misturariam as coisas, teria que pensar seriamente em entregar à ‘bruxa’, como parte do pagamento de uma senhora com menos quilômetros e alguma função nova. Mas, como sou lento para transitar este mundo da reposição e corro o risco de que a ‘bruxa’ me ganhe a mão e seja eu o entregue...

* Jornalista e escritor uruguaio


Comentário de Richard Jakubaszko:
Eduardo Galeano é um jornalista e escritor uruguaio, por vezes genial como na presente crônica, um texto inigualável e saboroso. Evidentemente eu já havia pensado no tema sobre o qual ele discorre no texto acima, apenas não tive a paciência de escrever algo a respeito, por entender que é absolutamente contrário ao que as pessoas pensam e fazem hoje em dia. Muitos dos que têm hoje mais de 40 anos já perceberam que essas coisas mudaram, e como, nos tempos modernos. Quantos de nós já não reclamamos? Apenas não escrevemos com a graça e simplicidade de Galeano.
O que se aplica adequadamente na questão é o absurdo do consumismo moderno (e sobre isso Galeano também já escreveu) e a imperiosa necessidade de reaproveitarmos e reciclarmos para conquistar a sustentabilidade.

NOTA ADICIONAL DO BLOGUEIRO: conforme comentário abaixo, consta que a autoria do texto acima não é de Eduardo Galeano, e sim de Marciano Durán, outro autor uruguaio ( http://www.marcianoduran.com.uy/?p=176 ).
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12 comentários:

  1. DiAfonso [Recife - PE]

    Caro Richard Jakubaszko, boa tarde.

    O Eduardo Galeano é essa simplicidade que encanta.

    Grande abraço!

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  2. José Roberto Barbieri, Franca-SP13 de fevereiro de 2011 às 23:06

    São as palavras exatas para os da nossa geração. A gente sabe (mais que sabe, sente) disso tudo, mas se pergunta: Por que eu não escreví isso antes? Esse cara roubou a crônica que eu tinha em mente....eu não escreví por preguiça....ou porque não saberia me expressar dessa maneira?
    Agora, tem uma coisa que ainda não me pegou (eu disse "ainda", sabe-se lá...): de celular eu não troco e você sabe porque. Como diria o Ubaldo, para ser politicamente correto, eu sou um comunicacionalmente desprovido.
    Boa semana

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  3. Fernando Faria - Viçosa-MG14 de fevereiro de 2011 às 09:51

    Caro Richard Jakubaszko, bom dia!
    Excelente a crônica do Galeano! Para quem tem mais de 50 anos como eu, as palavras soam como um eco dolorido de saudade, como lembrança de um tempo em que a vida era maravilhosa, apesar de sofrida, e que, infelizmente, não voltará jamais.
    Tenho pena dessas gerações que surgiram após a década de 80, justamente depois que o País ficou livre do regime militar. O Brasil mudou muito nesses 30 anos. Ficou mais fácil para as pessoas obterem seus bens, mas elas não sabem lhes dar o devido valor e, por isso, acham que tudo é descartável, até o amor.
    Mas, por outro lado, acho que nem tudo está perdido. Ainda dá tempo de ensinarmos aos nossos filhos e netos os verdadeiros valores e objetos que devemos preservar.
    Cordial abraço!
    Fernando Faria - Viçosa-MG

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  4. Ronildo Matsuura / Belém-PA21 de março de 2011 às 12:41

    Grande Eduardo Galeano!

    Estou às vésperas de completar 40 anos e é emocionante ler algo que vivi na minha infância e juventude, e agora está ocorrendo em minha fase adulta.

    Parece que realmente antes guardávamos tudo, pois sempre havia uma utilidade para alguma coisinha, agora tudo se tornou descartável.

    E as amizades?

    Fazemos ou fingimos que fazemos amizades pela internet, e-mail, mensageiros e tão rapido como fazemos as amizades, também esquecemos.

    Este texto incrível deveria ser amplamente divulgado.

    Grande abraço!

    Ronildo Matsuura
    Belém-PA

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  5. TIAGO HENRIQUE DA SILVA28 de abril de 2011 às 22:20

    Ainda estou na casa dos vinte mas muitas destas coisas vivi visitando a casa dos mais velhos em meu bairro como moro no interior Sul de Minas as coisas aqui tendem a passar mais devagar e a as mudanças seguem um ritimo mais lento habitos como estes são raros no dias de hoje pois a disciminação do descarte já se tornou parte da cultura desta geração que não sabe mais reutilizar e consertar e os valores são futeis ter e melhor que ser copiar e melhor que criar, e dificil pensar que muita coisa se perdeu e os novos habitos são o retrocesso de uma sociedade que precisa reaprender que a felicidade não esta em consumir mas em manter o que e de bom e viver sem impozições ditadas pela propagada e a cultura do ter .( TIAGO H DA SILVA . GESTOR AMBIENTAL - tiago.03@hotmail.com

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  6. Thiago Silva, boa. Leia o "Tudo o que a gente queria ser", vc vai gostar, aqui no blog: http://richardjakubaszko.blogspot.com/2009/05/tudo-o-que-gente-queria-ser.html
    Richard

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  7. Alexandre Siqueira - Rio de Janeiro - RJ
    Prezado Richard Jakubaszko,
    Gostaria de certificar-me sobre a origem desse texto. Por favor, se souber me informe onde foi originalmente publicado e quem o traduziu.
    Obrigado.

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  8. Alexandre,
    lamento, não tenho confirmação da autoria, constava como sendo de Galeano. Retirei de algum blog na internet, nem lembro qual, mas me pareceu de gente séria.

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  9. Prezado Richard Jakubaszko,
    Em decorrência de sua resposta, procurei a origem desse texto e descobri que ele foi publicado originalmente com o título "Desechando lo desechable" em Janeiro de 2006 por Marciano Durán, outro autor uruguaio (http://www.marcianoduran.com.uy/?p=176).
    Vários comentários dão conta dessa falsa atribuição de autoria, bem como de alterações do texto original (não somente do título, que teve diversas outras versões), ainda em espanhol.
    Cabe mencionar que o título em espanhol do qual foi traduzida a versão que você publicou é "Me caí del mundo y no sé por donde se entra". Assim, a tradução deveria iniciar por "Caí DO mundo", e não "Caí NO mundo", que nem faz muito sentido.
    Em Outrubro/2007, o autor original postou alguns esclarecimentos sobre a confusão gerada por essas indevidas alterações propagadas via Internet (http://www.marcianoduran.com.uy/?p=278).
    Em março de 2009, o autor voltou ao tema e transcreveu trechos de uma entrevista do próprio Eduardo Galeano, onde este afirma ”…por ejemplo, mi trabajo más felicitado, más laureado, que circula por Internet no me pertenece, y desconozco quién me lo atribuyó…”, referindo-se a “Por qué no tengo DVD”, outro título criado por algum internauta para esse mesmo texto.
    Este comentário visa somente esclarecer a questão, para que a autoria do texto seja devidamente reconhecida. Provavelmente, para quem inicia a circulação desse tipo de falsificação (ressalvo não ser seu caso, Jakubaszko), não vale o texto em si, mas sim a autoridade que lhe é atribuída pelo nome que assina, de preferência alguém mais divulgado pela mídia. Resquícios de uma mentalidade escolástica na era cibernética...
    Abraço,
    Alexandre, Rio de Janeiro

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  10. Alexandre,
    lamentavelmente essas coisas acontecem na internet. O texto acima, ao qual atribui a Galeano, repercutindo o que havia sido publicado em algum outro blog (e do meu blog foi replicado muitas vezes...) é mais um caso típico.
    Aqui mesmo neste blog um texto foi atribuído a Shakespeare, mas depois retificado, veja em http://richardjakubaszko.blogspot.com/2009/02/aprender-ser-ou-nao-ser.html
    Acredito ser impossível fiscalizar isso. Textos meus também têm sido replicados parcialmente pela internet, assinados por outros, ou usados sem atribuir-me a autoria.

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  11. Esse texto não é de Galeano

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  12. Eu amei! Nem tenho palavras pra expressar-me, pois todas foram muito bem usadas. Repensar certos conceitos é muito importante para todos nós. Parabéns.

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