quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Caça ao guerreiro

Emiliano José *
Diante de um espetáculo burlesco como o oferecido pelos procuradores da Lava Jato nas últimas horas, onde as provas são deixadas de lado em favor do objetivo político de inviabilizar Lula para 2018, a gente, por mais calejado esteja com a partidarização do sistema de justiça, queda estupefato, tomado de vergonha alheia. Até onde vão? É muito evidente o lado especificamente político dessa incrível perseguição à maior liderança política brasileira. O sistema de justiça quer destruí-lo, aniquilá-lo, quebrá-lo, para além de condená-lo e prendê-lo, se puder.

Sintomático: a cena midiática da denúncia sem provas é montada logo após o governo golpista ter jogado carga ao mar. Cunha descartado como peça agora inútil, o terreno estava limpo para a continuidade acelerada do cerco a Lula, existente desde sempre, e intensificada recentemente com vistas às próximas eleições presidenciais.

E não se dá nem um tempinho. Tudo como previsto. A crônica de uma perseguição anunciada. Há pressa, um olho no padre, outro na missa. Um olho no cronograma do processo, outro no calendário eleitoral. Afinal, os inimigos de Lula sabem: o massacre judicial-midiático não o impede de continuar na ponta de todas as pesquisas eleitorais, e quanto mais o atacam, mais ele cresce.

O povo não é bobo.

Penso em Tancredo Neves, no célebre discurso de outubro de 1954, sempre volto a ele, perguntando sobre por que tanta perseguição ao presidente Getúlio Vargas. Tinha certeza o velho político de inegável vocação democrática: as razões não eram pessoais. Deviam-se às reformas levadas a cabo pelo governo dele, à Petrobras, à política soberana desenvolvida, ao salário mínimo recuperado, às medidas favoráveis aos trabalhadores.

Tudo isso pode ser repetido ad nauseam em relação a Lula, cujas políticas inegavelmente mudaram a vida dos mais pobres, agora atacadas frontalmente pelo governo golpista de Temer. Reflito, e minha reflexão me leva a pensar na origem de Lula. No quanto há de pessoal no ódio devotado a ele pelas camadas dominantes, por setores do sistema de justiça, pela mídia hegemônica, por setores das camadas médias.

Lula agride os bem-pensantes, os homens brancos engravatados de paletó preto, os jornalistas acomodados à ideologia da Casa-Grande, àquela parcela das camadas médias cuja repulsa a pobres é visceral. Ele é uma irrupção vinda das camadas mais pobres, sem eira nem beira, sem paletó preto gravata e diploma, inaceitável para um País cuja história está marcada a ferro e a fogo por quase 400 anos de escravidão.

Um nordestino pobre não tinha o direito de chegar à presidência da República.

Além disso, não se vergar, não se curvar aos costumes dominantes, não assumir os trejeitos da Casa-Grande, e desenvolver políticas voltadas àquela gentinha tão desprezível, de operários aos catadores de papel. Não tinha o direito de inventar bolsa-família, prouni, pronatec, espalhar universidades públicas, institutos federais, essa baboseira toda. Claro, se não ganharam no voto, vai na tora mesmo, vai no golpe.

Está certo, o problema é essencialmente político. Mas, é um problema político muito especial. Lula é o primeiro estranho no ninho a chegar à presidência da República, sempre ocupada por homens engravatados de paletó preto.

Não tem jeito: recorro às lições da história para tentar explicar as pretensões dos inimigos de Lula, desejos contidos que sejam.

Lembro da Revolução dos Alfaiates, dos quatro condenados à morte: João de Deus do Nascimento, Manuel Faustino Santos Lira, Lucas Dantas do Amorim Torres e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga. Foram enforcados na Praça da Piedade, dia 8 de novembro de 1799. Mortos para dar o exemplo, descartado um monte de gente da elite envolvida na conspiração. Sempre assim.

Os quatro foram esquartejados.

Pedaços dos corpos expostos em lugares públicos para serem vistos por todos.

De modo a horrorizar, um efeito-demonstração do terror.

Durante cinco dias, a população de Salvador olhou nos olhos mortos dos quatro mártires, para suas cabeças despregadas dos corpos, alternando sentimentos de compaixão e indignação.

Terror, consciente.

Dia 13 de novembro, as cabeças cortadas, outras partes dos corpos foram retiradas e enterradas, única forma de acabar com o odor exalado pela putrefação dos restos retalhados dos cadáveres.

A Coroa portuguesa não podia, ou não queria, deixar florescer a ideia da revolução democrático-burguesa, cuja influência crescia na esteira da Revolução Francesa.

E a Revolução dos Alfaiates, com negros e pobres participando, insinuava uma igualdade que suprimisse a escravidão, inaceitável para a Coroa e também para as elites locais.

Da mesma forma, inaceitável tenha Lula iniciado um processo de ascensão dos pobres no Brasil, conferindo-lhe, além da melhoria das condições de vida, o estatuto de cidadãos, pois milhões estavam excluídos de tudo quando ele ascendeu à presidência da República.

Não podem esquartejá-lo.

Querem, mas não podem.

O ódio saltando das redes, os olhos siderados de alguns dos integrantes do sistema de justiça, a visão messiânica-salvadora emergindo com absoluta nitidez, indicam o quanto desejariam isso. Por ódio de classe – não economizemos as palavras, não escondamos a luta de classes, tão óbvia, cristalina nos dias atuais desse Brasil aviltado por um golpe.

* o autor é jornalista

Publicado originalmente em http://carosamigos.com.br/index.php/colunistas/198-emiliano-jose/7880-caca-ao-guerreiro

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