Carlos Eduardo Florence *
Deu-se o ocorrido, retratado aqui em memória, na forma concreta de um dicionário ostensivo, incluso irônico, quiçá sarcástico, ao instigar-me indelicado, enfatizo a agressão para marcar a forte sensação de injustiça em minha autonomia e liberdade existencial. Apeteceu-lhe, visto que se deu inconteste, reafirmo só agora, embora ainda inconformado espargir em meu sossego andarilho ao acaso pela circunvizinhança habitual que transito não menos do que o vocábulo apofântico, como se o gracejo fosse um direito intempestivo seu, mas com claros objetivos insultantes do glossário. Saliento então, se fez este absurdo em minha terra natal, perambulando adjacências.
Desde o último ano notava já sintomas, quando a crise política, social, econômica e sanitária deflagrou, que além de todas estas atividades levantadas também se indispuseram às rotinas tradicionais semânticas para confundirem os provérbios e as dialéticas. Portanto os objetos diretos não se encontravam mais harmônicos nas cadências em que os ordenei, os verbos transitivos perderam o sabor afrodisíaco e a Quinta de Beethoven foi minimizada, registros fundamentais estes para o entendimento. Não bastando, e no arremate, os sintomas das euforias coletivas em apoio aos protestos sociais, de todos os matizes, se tornaram mais resilientes, inexplicavelmente. Só poderiam ser premonições do adjetivo apofântico, impertinente, marchando contumaz sobre o futuro e que o dicionário nada mais fez do que impor e confirmar.
Agravou-se sobremaneira o remanescente, assim que os adjuntos adverbiais foram miscigenados com os atributos predicativos, tanto que a autonomia dos delírios subjetivos passou a infernizar-me o cotidiano. Meu confessor, Irmão Raumi Dorengo, Xamã Oriungutá, retornou ao sanatório preferido, abandonou-me na passeata da Paulista contra ou a favor da teoria da relatividade, talvez da evolução darwiniana, se não estiver enganado. Não bastando estes traumas vitais, irrompeu o apofântico filhote do dicionário com a mesma magnitude arrogante que os gregos o criaram para definir o indefinível. Em nome do Pai, do Filho, do Espírito Santo, Amém. Saravá. Apresentou-o in corpus.
E assim apofântico se alvorou permissível ao reflexo da imensidão da incongruência ou à síntese de tudo, pois pura e simplesmente expressa, simultaneamente, o falso e ou o verdadeiro, quando atribui juízo de um predicado a um sujeito. Repito, imagine, podendo ser falso ou verdadeiro e não estar envolvido em algum inquérito ambientalista, formação de seita nova com fins arrecadatórios ou até conjugação e escambo de informações pedófilas! Passou Dr. Arsério Ficus, aposentado delegado de polícia e relacionei as matérias aos milicianos. Não confortou, mas passei a aceitar o reforço do paradoxo já sobre o absurdo mesmo que ouça o canto ameno do coleirinha na madrugada. A partir de então pressenti que os significantes não mais refletiriam os significados, embora as meninas se deleitassem saltando amarelinha em frente as calçadas onde cruzei carregando convicto estas anotações, que recolhi para não tomarem sereno, a tiracolo e emprestá-las ao Vigário Liotéo Gobo.
Enquanto sim, se fazendo o entardecer, a brisa se distraia em melodias suaves dedilhando as palmeiras cirandando poesias e encantos. Um tom rosa encaminhou mais cedo para ocupar sua participação no poente informando que gostaria de atender o chamado do infinito antes de escurecer. Não intercedi e pensei tal qual seria acoplar o apofântico às imagens que nos definiam como ser único do cenário nos devorando entusiasmado do entardecer, entre o coleirinha, Paulista, gregos, adjunto adverbial, o dicionário, eu, e os demais a regermos o paradoxo e a esperança. Um sabor doce de demência veio nos acariciar em tons pastéis como Picasso usava nos detalhes sutis.
Havia espaço naquele momento para supor calmamente uma defloração tranquila e mágica. Dediquei-me sem remorso à fantasia aproveitando a vista da brisa percorrer suas intenções, a maré montante aconchegar carinhosa à janela da moça desconhecida, sem sequer me conceder seu esgarço. Para não deprimir lembrei que se fazia sábado. O papagaio do menino com os pés descalços prendeu-se na copa do pinheiro mais alto e ele o chamava de volta sussurrando afetuoso filho da puta no ouvido da linha que os deixavam imantados e atrelados juntos ao universo, ao sonho, ao infinito. O cosmos é interessante, indivisível, demente ou calhorda? Perguntei ao calado atributo apofântico indiferente e mudo, pois o todo me pertencia e eu era o todo.
Não havia mais razão para melindres, angústias ou remorsos, apesar de que tudo, pelo menos enquanto a facticidade comandava, se submetesse à lei da gravidade, ao império de Ayres invadindo o silêncio da menopausa de Vênus ou os colibris continuassem enfeitando a sutileza da simbiose com as flores deleitando a primavera. Confesso que pus em dúvida se retornaria ao assunto face a intensa revolta pessoal, ou adotaria um pleonasmo abandonado na orla da praia, a pedir donativos ou preces para sobreviver, mas jamais permitiria deixar o apofântico adjetivo morrer de inanição por desconsideração do dicionário.
O mundo dá voltas, conforme umas das frases mais originais proferidas raramente, mas conferi relutante que a primeira esquina à direita não me levaria além do nada. Tal se deu e mudei de posição, embora não tivesse mesmo a menor necessidade de por ali rumar, pois, repetindo, era sábado, as crianças tiveram aula de catecismo antes de se masturbarem, para poderem usar seus aplicativos depois e antes de serem obrigadas a tomar banho. Do desconhecido uma flauta se fazia brincar de dolência com as cores preferidas, as maritacas transportavam seus chilros destoantes para o alto da Serra do Merengo antes de deixá-los escorrer habilmente pelo vale que acomodava o Ribeiro da Guincha. Minha terra, saudade.
Perguntei ao dicionário se esta seria uma situação apofântica, mas ele foi lacônico, assobiou um Bolero de Havel, se imiscuiu entre os carunchos das prateleiras conversando amenidades, se metamorfoseou em silogismo ou proselitismo, não identificável de antemão no ensejo, mas notei, mesmo como as andorinhas preferem antes de beliscarem sutis os mosquitos imperceptíveis nos silêncios azuis ao cair da tarde, que a resposta não seria sincera. Cena nostálgica da hora da Ave Maria das minhas recordações de infância se refizeram ao não segurar, com dolência e nostalgia, duas lágrimas distraídas sem contrição.
Mudei a página para verificar se o entorno estava afinado em lá ou as crianças estariam somente se fazendo de alegres. O ser é muito interessante, somos nós que o fazemos, padecemos ou o sofremos. Meu confessor, Irmão Dorengo, e Platão não se afinaram nesta estrofe até utilizarem o materialismo histórico, o que não mudou nada na vida, puta merda, segundo a vidente Inhatã do Sumidourinho dos Alagados, a qual sigo e prescrevo. Fiquei em dúvida de como chegaram simultaneamente estes pensamentos perfeitamente lógicos e sincronizados ao meu raciocínio? Em resposta, e por isto mesmo, com muita segurança, tentei achar para o apofântico desiludido, uma rima medieval, gregoriana, mas todas haviam sido gastas nas promoções de marcas de sabão-em-pó.
A lassidão foi mais peremptória, nem titubeei, preferi o bandolim que estava empoeirado sobre o esquecimento há bastante tempo. E ao desestimulo da rima com sabão-em-pó, executei Seresta para Duas Luas. Transgredi em fá em consequência, assunto prioritário para a meditação Ishua, pois é como dizem os cientistas; as moscas zunem nesta tonalidade. Por desespero, não me definiram se em sustenido ou bemol se dão os zunidos de todos os mosquitos da terra? O silêncio, no transcorrer andante, me permitiu enxergar inebriado uma melodia desconhecida descendo a ladeira com os telhados espionando a solidão como se fossem soluções para resguardo de homofobia, motivo para missa de sétimo dia ou carência de descarrego. Este o ambiente alegre circundante, em que me encontrava, minha terra, ali em Jaboatão do Candeio.
Cinilinha, meu sonho, saiu do cabelereiro, fingiu que não me viu, sabia que eu a desejava e seguiu por umas alamedas arborizadas, carregando minhas fantasias, marcando as calçadas com meus desejos, procurando algo melhor para ela se entreter com a tarde desfazendo no poente. Estas frases soltas, penso eu, reforçam minha atenção e saudades, mas só em conjunto, para coisas interligadas como o presente do subjuntivo, menopausa, minha pretensão em ser feliz e ainda o romance de Machado de Assis na cabeceira esperando ser lido há muito. Fatos fundamentais na minha vida naquele momento. Com este pensamento apofântico, verdadeiro ou falso como se expressa, continuei remanchando pelas ruelas vazias antes que o sol se escondesse.
Atentei. Ah! Lembrei agora, fundamental incluir no contexto sido, o cachorro do Eráldio da Zefrinha, que selecionava amiúde poste eloquente, preferido, seguindo seu faro apurado, enquanto uma nuvem passante observava a alegria jovem enfeitar a Praça da Matriz, carreando as normalistas sorridentes. Provavelmente para se enfeitarem de missangas e fantasias para o baile do sábado que se faria vir. Baile no mesmo sábado, no mesmo clube, mesmo namorado, mesmo sonho, mesmo mesmo. Sem nenhuma petulância, as aleluias ainda definiriam se alvoroçariam suas revoadas antes ou depois da chuva. Aleluia tem este temperamento mágico; surge do inexistente, prolifera alegre pelo inusitado, brinca de bailado com pássaros que surgem do amém e some sem dizer adeus.
Um sol já sem sobrenome, pré-conceitos ou insistência titubeou escolher olhar alegre entre a reverência do Monsenhor Agipino Colato, seguindo ao mosteiro para ensaiar as gregorianas da missa do galo, e o humilde chafariz alterando enfeitar-se com as tonalidades do ocaso desfazendo manso, sem pressa, como determinava o Senhor. Consultei, sem resposta o mistério do anoitecer, como prescrevia Nhonhato Cura, muladeiro de profissão e cisma, que atentou ensinar-me a benzer berne e mal olhado, no tempo que eu não sabia o que era dicionário, muito menos apofântico e nem desconfiava que era feliz não só pelo pôr no sol. A reposta do mistério veio em sonho na madrugada, amolengado de cisuras, quebrantadas na indefinição e incógnitas mal terminadas, assim como cascavel no cio apreciando a presa tal qual o bote freudiano atazanando o inconsciente ou o Édipo no divã.
Não houve espaço para saborear os sorrisos de duas meninas procurando destinos ou sonhos, pois o apofântico, do dicionário, empertigado começou a demonstrar que gostaria de se entreter pelas calçadas, corridas, verdes, normalistas, brisas, deleitar jardim, mesmo como preferem as crianças alegres. Comecei a definir claramente a situação; as meninas, atentei de forma clara, apofântica, tanto que não sabia se eram reais ou as imaginei e, assim, aproveitei para arguir se as pombas estariam satisfeitas com os restolhos das merendas que as crianças desfaziam pelo trajeto. De mãos dadas as jovens foram sendo sumidas pelo resto de silêncio que ainda consegui consultar, pois as carreava para suas esperanças semeadas para o baile, maquiagem, namorados, para a noite. Minha terra.
A revoada das aleluias trouxe reminiscências. As sombras esconderam o rubro do infinito para aninhar o sono do Senhor. Se fez hora de levar a saudade e o apofântico para o sossego. Confirmei, sábado sim, era, mas não dispôs se eu era antes, seria agora ou serei depois. Meu juízo escolheu trabalhar assim mesmo em escala dodecafônica. Mesmo como o caro delírio suave expressa, sempre sendo, que nunca me confessou a realidade ou o falso para não desiludir o ser do meu entorno e fingir que sou normal, acreditei que bastava. Algo morno e inconsciente nos levou ao inexplicável pelas mãos da dúvida. Nos conformamos.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado em https://carloseduardoflorence.blogspot.com/2021/06/apofantico-aoinapropriado-capricho-ha.html
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