sábado, 4 de fevereiro de 2023

Não era dia da onça beber água

Rinaldo Arruda  
Há muitas histórias sobre onças acontecidas com os que vivem nas matas.

Balduíno contou que, de certa feita, caminhando no mato indo da aldeia da Beira Rio para a Aldeia do Tapema, se deparou com rastro de onça atravessando a trilha. Era rastro fresco e como era próximo da aldeia, resolveu seguir o rastro e ver onde ia a onça e até quem sabe, se fosse em direção às proximidades das aldeias, avisar o pessoal.

Saiu da trilha seguindo os rastros, lentamente sem fazer ruídos, caminhou uns cem metros ... o caminho da onça fazia uma curva como que se estivesse voltando na direção oposta... andou mais um pouco seguindo as patas da onça e, de repente, estalou uma pisada nas folhas secas uns 10 metros atrás dele. Quando se voltou, viu que uma onça preta o seguia enquanto ele seguia os rastros dela. Atirou rápido com sua espingarda, conseguiu ferir fatalmente a onça, escapando de um ataque que ela armava contra ele.


Foi assim. A onça percebeu que era seguida, fez a volta e passou a seguir o perseguidor, por isso a trilha da onça fazia aquela curva estranha como se ela voltasse para a direção de onde vinha vindo.


O Vicente, quando morava na aldeia do Barranco Vermelho, quase foi morto por uma onça pintada. De dia ele havia escavado um poço, já com uns 3 metros de fundura, perto de sua maloca. Trabalhou nisso o dia inteiro, de tardezinha banhou-se no rio Juruena, voltou para casa, jantou, papeou com a mulher e os filhos, foram dormir cedo. De madrugada, ainda escuro, saiu para mijar, se afastou um pouco da casa e foi urinar perto do poço. Do nada saltou uma onça pintada sobre ele. Desviou, mas tomou uma patada que rasgou seu braço, esquerdo. Ela veio de novo e, no encontrão, empurrou/socou a onça que, por muita sorte dele, escorregou na beira e caiu no fundo do poço, sem conseguir sair. Foi só ir até em casa pegar a arma e matar a onça ali dentro mesmo.


E depois da história vem as conversas. Mas, era onça mesmo? Como assim? - perguntava eu.


O corpo era da onça mas podia ser um Rikbaktsa falecido querendo se vingar, enciumado e invejoso dos vivos.


Quando alguém desse povo morre, todos seus parentes vem para o funeral, seja os do lado do seu clã, do mesmo sangue do seu pai, seja do lado do clã oposto, o da mãe, que são os parentes por casamento. Assim que uma pessoa morre, vai um emissário para todas as aldeias e chega cantando na frente das casas, anunciando a morte do parente. Logo todos se arrumam, com as pinturas faciais de cada clã, vestindo seus cocares de funeral, levando suas armas e seguem para a aldeia do falecido.


Na aldeia do falecido, seus parentes mais próximos já juntaram comida da roça, carne de caça ou peixe, fizeram chicha para beber, as mulheres já estão chorando ritualmente, e cada comitiva que chega das outras aldeias já sai das canoas em fila (ou do barco com motor de popa) cantando/gritando/chorando, e dirigem-se para onde o corpo está sendo velado.


É bem impressionante aquela onda de emoção das mulheres chorando, som contínuo e ritmado, os homens brandindo as armas falando/gritando. Tudo é posto para fora, as mágoas deixadas pelo morto, as culpas reais ou presumidas de cada um, tudo de bom e ruim que pensavam do morto e depois de umas horas dessa catarse, tudo pisado e repisado, tudo fica limpo. O morto é enterrado com seus pertences pessoais, seus pertences outros são queimados e por um bom tempo não se pronunciará mais seu nome. Sua casa será desmanchada e a mulher e os filhos rasparão a cabeça e mudarão para outra casa ou outra aldeia.


Quando esse funeral é bem feito, de acordo com a tradição e com sentimentos verdadeiros, o falecido ou falecida encontra o caminho para o paraíso Rikbaktsa e lá reencontra seus ancestrais na aldeia do “céu”, onde há muita fartura, muita mata, água farta e límpida e todos vivem bem.


Mas, quando o falecido era uma pessoa que em vida fez muitos mal feitos e, principalmente, quando a pessoa era sovina, não era solidário, nunca retribuía o que ganhava dos outros seja da roça, caça ou peixes, sem nenhuma generosidade, o funeral nunca era bem sucedido, seja por que as pessoas não conseguiam ter a atitude interna certa, seja por que era tudo feito “mais ou menos”. Sendo assim, o espírito do morto não acha o caminho para o “paraíso” e fica vagando por perto, com raiva e ciúme dos vivos. Nesses casos, o espírito encarna numa onça, ou numa cobra venenosa, em qualquer animal perigoso que ataca os seres humanos. Então, parece onça, mas não é onça...


E aí, em maio de 1988, mais ou menos, eu estava de novo no país dos Rikbaktsa, lá no rio Juruena. Estava hospedado na escola da Aldeia da Primeira Cachoeira mas a festa grande deste ano estava sendo na aldeia Pé de Mutum, uma das primeiras festas grandes na Terra Indígena Japuíra.


Os Rikbaktsa tinha sido transferidos, expulsos, dessa parte de seu território tradicional na época em que morriam das epidemias causadas pelos primeiros contatos com os brancos. Mas, agora, essa terra tinha sido recém reconquistada pelos Rikbaktsa numa luta dura, no terreno e na justiça, sendo reconhecido seu direito à Terra Indígena Japuíra. Pé de Mutum veio a ser a primeira e maior aldeia dessa terra indígena, fundada por Geraldino Matsy, sua parentela e aliados. A festa grande era lá esse ano.


Foi muita gente nessa festa e em outro momento eu conto como ela é. Saímos da aldeia da Primeira Cachoeira numa voadeira bem cheia de gente. Barco para seis pessoas levava onze e mais o rancho e as tranqueiras (rede, armas, roupas etc.) de todos.


Muitas horas de viagem descendo o rio Juruena, passamos pela foz do rio do Sangue e seguimos adiante. Saímos cedo, fomos parando em outras aldeias no caminho para um papo e comer alguma coisa, sempre ofertada em qualquer casa que alguém vá. Já no meio da tarde, ao passar por uma das ilhas do rio, de repente salta para a água uma enorme onça parda. O piloto da voadeira mudou o rumo, indo direto em direção a ela que passou a nadar rapidamente tentando alcançar a margem do rio.


No barco cheio eu estava no proa, bem no bico da voadeira e a única espingarda, uma winchester 22, estava bem ao meu lado. Naquela perseguição bizarra, voadeira chacoalhando nas águas agitadas do rio, caçando a onça que fugia e parecia que ia alcançar a margem, ao ver que a arma estava bem a meu lado, todos passaram a gritar para que eu atirasse, logo!


- Atira Rinaldo! Atira, rápido, ela vai alcançar a margem.

- Atira Rinaldo! Atira! Agora!


Onça linda, majestosa na força de seu nado no grande rio, já há uns 10 metros da margem, rio encachoeirado, barco pulando, onça nadando, encostei a winchester no ombro, mirei e, sem muita esperança, premido pelos gritos, atirei. De imediato, num momento congelado na minha mente, a onça parou de chofre, braços abertos, cabeça mole afundando na água.


Havia acertado na nuca, morte imediata. Nem acreditei. Meio triste por ter acertado bicho tão lindo, e perigoso.


Quando alguém mata um bicho, é o outro que carrega e depois divide com os da aldeia. Então, dei a onça para Salvador, irmão do Geraldino, do clã da Arara Amarela, o mais velho da voadeira.


Sua cabeça foi cortada e depositada no banco da voadeira, ao lado de Salvador, voltada para a frente, de olhos abertos. Companhia surrealista de viagem, aquela face de onça, cabeça grande, como que sentada junto conosco, no resto da viagem. Meio assombroso...


Na chegada causou espanto, e a história foi contada muitas vezes para o pessoal que estava na aldeia.


De noite, lua cheia majestosa pairando sobre o rio e a aldeia, deixando tudo claro, fazia até sombra e a água do rio brilhava. O fogo foi aceso na frente da casa de Geraldino, o fundador da aldeia, panelão de água fervendo onde foi colocada a cabeça da onça, por bastante tempo, até amolecer e permitir a retirada dos dentes caninos, enormes e potentes.


O espírito da onça fica ali, no interior dos dentes caninos, dali ela tira sua força e potência. Os dentes foram furados na sua base pelos companheiros do clã oposto, no caso pelos que eram do clã dos Harobiktsa (arara cabeçuda, um tipo de arara vermelha), num trabalho cercado de cuidados para que os dentes não rachassem deixando o espírito escapar. Enquanto isso, outros também do clã Harobiktsa, teciam com tucum os fios para passar pelos furos e constituir o colar. Salvador usou esse colar até seu falecimento, em 2018.


Mas, de tudo isso, ficou até hoje na minha mente o aviso que Salvador me deu, satisfeito com o colar no pescoço e me agradecendo pelo presente:

- De agora em diante tome cuidado ao andar no mato. Você matou a onça, e agora todas elas sabem disso, podem querer se vingar de você. Fica esperto no mato!


- Ô Salvador, podiam ter avisado antes de eu atirar, né, respondi meio na brincadeira.

Mas, levei a sério o aviso, fico sempre esperto ao andar na mata.


Salvador, 1988 Foto Rinaldo Arruda

 

 

 

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