terça-feira, 13 de agosto de 2024

Autonomia do Banco Central: um buraco negro na economia

Arthur Pinheiro Machado *
 

O gasto do governo brasileiro com juros da dívida pública atingiu um novo recorde histórico este ano, chegando a R$ 835 bilhões nos 12 meses encerrados em julho. O valor disputa com a Previdência Social o título de maior rubrica de todo o orçamento federal. Mas ao contrário do modelo da previdência, alvo constante de debates, críticas e reformas, o modelo de gestão do Banco Central é protegido por uma poderosa operação de blindagem.

A conta do Banco Central não para por aí. A taxa de juros básica da economia, a Selic, fixada pelo BC, influencia também o custo dos empréstimos no setor privado. São R$ 6 trilhões em empréstimos a empresas e famílias a um custo médio — Indicador de Custo de Crédito (ICC) — de 21,8% ao ano. Isso dá mais R$ 1,3 trilhão de juros pagos pelo setor privado. Ou seja, por ano o Brasil paga R$ 2,1 trilhões, ou 20% do Produto Interno Bruto (PIB) em juros.

Trata-se de um verdadeiro buraco negro no centro da economia brasileira, sugando recursos de famílias, empresas e governo e impedindo o país de crescer. Os governantes, ao invés de cobrarem responsabilidade exigindo prestação de contas e providências, fazem o contrário. A reação é dar mais autonomia para o Banco Central. Resta saber autonomia em relação a quem.

São R$ 2,1 trilhões a mais no bolso de alguém todos os anos. Certamente não é no bolso do trabalhador que acorda cedo para pegar ônibus, nem do empresário que quebra a cabeça para fechar as contas do fim do mês. E nem dos governos, que apanham de todos os lados para ver a dívida pública aumentar ano a ano.

O dinheiro vai parar no bolso dos rentistas, que ganham dinheiro fácil comprando títulos remunerados a taxas estratosféricas. Essa classe de rentistas atua como um verdadeiro oligopólio globalista parasitário, que domina o debate público e impõe sua visão de mundo. Esse juros se comportam não como um aluguel por dinheiro, depois destinado a investimento e consumo. É pura transferência de riqueza entre quem mais precisa e quem mais tem.

Mas esse ganho dos rentistas é ilusório. Um país sugado por taxas de juros irrealistas e por um sistema de crédito proibitivo não produz negócios, não gera riqueza e não cresce. A longo prazo, todos ficam mais pobres. O que parece ser dinheiro fácil no bolso dos oligopólios rentistas é na verdade o custo de oportunidade de não crescer.

Desde o fim da inflação crônica, 30 anos atrás, o Brasil assumiu o posto de líder mundial das taxas de juros no planeta. Em um mundo onde é normal ter taxas de juros reais (taxa de juros descontada a inflação), negativas ou muito próximas a zero, o Brasil se transformou no paraíso dos juros altos e do dinheiro fácil.

Que o Banco Central tome decisões que influenciam a vida de todos sem ter que prestar contas a ninguém não é algo trivial. Significa que o país abriu mão e sua soberania e do projeto de desenvolvimento nacional. Pouco adianta que executivos do BC distribuam atas dizendo que tomaram tal decisão por isso e por aquilo. O papel aceita tudo.

Há anos os executivos do BC gozam de autonomia política de fato, agindo com grande desenvoltura em suas decisões. O problema jurídico começou com a Lei Complementar 179/2021, que criou mandatos fixos para cargos de diretoria e presidência do Banco Central, prevendo regras tão complexas de remoção que equivalem efetivamente à estabilidade no mandato.

A Lei Complementar 179/2021 traz outras alterações questionáveis. Ela fixa como “objetivo fundamental” do Banco Central a estabilidade de preços e deixa as demais preocupações em segundo plano. Cria uma estranha função de “suavizar as flutuações do nível de atividade” e coloca em último lugar a entre suas prioridades a promoção do pleno emprego. Aparentemente a atuação do Banco Central é independente dos desempregados.

A EC 65/2023 vai ainda mais longe e dá ao Banco Central autonomia financeira. O projeto prevê que o Banco Central poderá captar seus próprios recursos por meio dos ganhos de “senhoriagem”, a remuneração obtida pela emissão de moeda. Com receita e orçamento próprios, o Banco Central passaria a ser uma espécie de organização paralela, um Estado dentro do Estado.

Teoria da captura e portas giratórias
O perigo de se ter agências reguladoras totalmente autônomas, sem instâncias efetivas de controle externo, é debatido no Direito Administrativo pela “teoria da captura”. Segundo a teoria da captura, as agências reguladoras tendem a ser “capturadas” pelos interesses dos setores econômicos regulados, passando a viabilizar projetos e objetivos de seus oligopólios privados, não do interesse público.

No caso específico do sistema financeiro, é utilizada com frequência a tese das “portas giratórias”. O entra e sai de executivos entre cargos no mercado financeiro e na autoridade monetária tornam praticamente impossível distinguir quem é quem. Representantes do sistema financeiro passam a comandar, direta ou indiretamente, as decisões do Estado.

Quando a lei diz que a soberania popular não apita na autoridade monetária, que ciclos econômicos devem ser “suavizados” e que a geração de empregos é um objetivo de quinta categoria, é para ficarmos preocupados. Quando o Banco Central está no comando de uma operação de transferência de renda equivalente a 20% do Produto Interno Bruto do país, é para ficarmos muito preocupados.

Fantasia do tecnocrata
Para justificar a autonomia do Banco Central, seus defensores costumam apelar para a “fantasia do tecnocrata”. Essa ilusão sustenta que as decisões do Banco Central são totalmente técnicas, isentas e baseadas em dados. Fantasiada de jaleco de cientista e calculadora na mão, a autoridade monetária tenta parecer acima do bem e do mal.

Essa fantasia ignora que também o campo científico é sujeito ao conflito e à disputa. A chamada “ortodoxia monetária” é hoje uma vidraça estilhaçada por críticas técnicas e teóricas. O problema remete ao um tema fundamental da estatística, que é a diferença entre correlação e causalidade. E a um problema típico da política econômica: a adequação entre meios e fins.

Se há uma correlação entre juros e inflação, o problema é saber se há uma causalidade suficientemente forte entre a manipulação dos juros e redução da inflação que justifique o seu custo. O debate técnico sobre o papel da ortodoxia monetarista no Brasil ganhou maior projeção nacional desde 2017 com a publicação de uma série de artigos e o livro “Juros, Moeda, e Ortodoxia”, do economista André Lara Resende, um dos responsáveis pelo Plano Real.

Ortodoxia monetarista
O primeiro problema é que a tradição monetarista vem de um mundo no qual o dinheiro era impresso e o sistema financeiro usava máquinas de escrever e papel carbono. Hoje há uma infinidade de instrumentos financeiros novos aparecendo a todo momento, operados eletronicamente em escala global. Não é mais óbvio que a manipulação da taxa de juros pela autoridade monetária nacional tem impacto direto sobre a inflação.

Outro ponto é que no Brasil temos uma longa tradição de análises alternativas ao tema inflacionário, como a teoria da inflação estrutural, da inflação de custos e inflação inercial. Todas essas análises colocam em xeque a visão monetarista ortodoxa. A complexidade do fenômeno inflacionário no mundo real deixa a celebrada “elegância matemática” da ortodoxia monetária com a aparência de uma abstração sem sentido.

Nem sempre a origem do fenômeno monetário é monetário. Questões jurídicas, comerciais e regulatórias interferem, e há outros modos de lidar com o problema. A reforma mais discutida é a questão da coordenação entre políticas monetária e fiscal. Como em um barco com remadores indo um para cada lado, o governo tenta fazer o país crescer e o Banco Central tenta fazer o país parar. O resultado é um país andando em círculos.

O próprio Plano Real foi uma grande jogada heterodoxa, que criou um indexador universal, a Unidade Real de Valor (URV), para desindexar a economia, e segurou a inflação na base do câmbio fixo. Questões cambiais, gargalos produtivos, mudanças tecnológicas, demográficas e fenômenos sociais os mais variados influenciam o aumento de preços. Substituir tudo isso por uma máquina que sobe e desce dos juros é uma grande falta de imaginação.

Libertando a imaginação
Como vimos, a proposta de autonomia do Banco Central não é simplesmente uma forma de assegurar a execução da política monetária, mas uma forma de isolar a instituição da sociedade. As reformas jurídicas que ampliam a independência do Banco Central violam diversos princípios constitucionais fundamentais, a começar pela soberania e o desenvolvimento nacional.

Os mandatos fixos propostos pela Lei Complementar 179/2021 e a autonomia orçamentária proposta pela Emenda Constitucional 65/2023 aumentam o desequilíbrio e tolhem a criatividade para encontrarmos saídas mais eficazes e eficientes para o fenômeno inflacionário. O Brasil é um país continental, desigual, altamente indexado e suscetível a bolhas inflacionárias de diversas naturezas. Inovação e reformas podem ajudar.

Temos um Estado interventor de grandes proporções, com diversas agências e políticas de fomento econômico. É irrealista imaginar um Banco Central como o grande campeão da moeda, que manipula a taxa de juros como a única variável relevante da inflação. A coordenação entre políticas monetária e fiscal deve ser o primeiro passo.

Conter a inflação é importante, mas dar mais autonomia ao Banco Central não resolve nada e ainda cria novos problemas. O principal deles é alimentar o buraco negro dos juros, que suga recursos da economia, tira de quem mais precisa para dar a quem mais tem e prende o Brasil no subdesenvolvimento. A armadilha dos juros amplia a desigualdade e trava o crescimento, exatamente como a inflação fez no passado.

* O autor é especialista em direito financeiro

Publicado no Conjur, em 12 de agosto de 2024: https://www.conjur.com.br/2024-ago-12/autonomia-do-banco-central-um-buraco-negro-na-economia/

 

 

 

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