Jorge Figueiredo *
O livro agora publicado por Andrei Martyanov, Losing Military Supremacy, é um epitáfio devastador para o imperialismo estado-unidense. Ele desmonta minuciosamente as razões porque os EUA já não têm a supremacia no plano militar – e destrói esse mito. O facto de o establishment dos EUA, dominado pelos neocons, ainda acreditar no seu próprio mito não o torna menos mítico. E o facto de os media de referência (os presstitutos, como diz Paul Craig Roberts) estarem constantemente a martelá-lo nas mentes do seu público não o torna mais sustentável – mentiras muitas vezes repetidas não se transformam em verdades.
A verdade verdadeira é que já estamos num mundo multipolar, mas os neocons que dominam o Estado Profundo não sabem disso. Recusam-se a reconhecê-lo e apegam-se teimosamente à ilusão de que os EUA continuam a ser a potência hegemônica do mundo. Isto já é absolutamente falso – mas os neocons não podem entender isso porque são ignorantes em assuntos militares. É um paradoxo que os mais belicosos deles sejam civis que nunca sequer fizeram o serviço militar, nem têm cultura tecnológica e histórica para entender as questões da paz e da guerra, as suas implicações e ramificações. A maioria da corja, que permeia tanto o Partido Democrata como o Republicano, só tem conhecimento de questões militares através de alguns Power Points assistidos em workshops. O autor refere-se mesmo ao “muito perigoso declínio das faculdades cognitivas americanas” (sic).
Martyanov, oficial russo graduado pela Academia Naval Kirov, é um profundo conhecedor da tecnologia militar. As suas análises são baseadas em conhecimento sólido e em experiência concreta. Elas são devastadoras para a classe dominante estado-unidense, para as suas elites militares e civis (estas últimas intelectualmente piores que as militares) e para o modo americano de fazer as guerras, ou seja, a guerra como um business para os monopólios ganharem dinheiro. Só com o disparo de 80 Tomahawks sobre a Síria, este ano, o seu fabricante faturou uns 140 milhões de dólares…
O livro está organizado em doze capítulos. Os seus títulos são significativos:
Introdução: O perigoso narcisismo da América
1 – A verdadeira medida do poder militar
2 – O nascimento da moderna mitologia militar americana
3 – As muitas interpretações equivocadas da II Guerra Mundial
4 – A incapacidade das elites americanas de apreenderem as realidades da guerra
5 – Déficits educacionais e caricaturas culturais
6 – Ameaça inflada, captura ideológica e questões de política doutrinária
7 – O fracasso para enfrentar o moderno realinhamento geopolítico
8 – O espectro da “Força esvaziada”
Conclusão: A ameaça de um maciço cálculo errado dos militares americanos
A alteração decisiva de Putin: Paz através da força
O perigo da situação presente é que "aqueles que manipulam a informação começam sinceramente a acreditar nas suas próprias falsificações, quando compram as suas próprias narrativas. Eles deixam então de serem manipuladores e tornam-se crentes numa narrativa. Eles próprios se tornam manipulados", considera Martyanov na introdução. Mas como saber a verdade? O autor responde citando Clausewitz: “é legítimo julgar um evento pelo seu resultado pois é o critério mais saudável”. E, neste aspecto, o registro histórico dos EUA é desastroso devido à incompetência “geopolítica, diplomática, militar e de inteligência”. Martynov dá muitos exemplos. Na verdade, desde 1950 os EUA nunca venceram uma guerra.
"Os Estados Unidos durante a guerra soviética no Afeganistão fizeram um enorme esforço para desencadear forças da Jihad que se tornaram uma metástase global. Mas, apesar deste esforço, o resultado final – tal como o dos Estados Unidos na Coreia, no Vietnam ou nos dias presentes no Iraque – foi o mesmo: nenhuma vitória à vista", lembra Martynov. E acrescenta: “há um enigma para a atual classe política americana, também conhecida como classe dominante: se os Estados Unidos são tão poderosos como alegado por muitos (…) então onde estão os resultados tangíveis do que ao longo de toda a história humana serviram como o mais importante teste de poder: vitórias em guerras?” Ele cita a pergunta de Patrick Armstrong, um observador americano: "Quando foi a última vez que os EUA venceram uma guerra? Quando foi a última vez que tropas treinadas dos EUA combateram eficazmente?". Talvez tenha sido a “vitória” da invasão de Granada, em 1983, ilha com 100 mil habitantes no Caribe e uma “tropa” de 500 homens…
O livro de Martyanov levanta problemas de fundo, que vão desde o sistema de ensino nos Estados Unidos até a deficiência congênita de muitos sistemas de armas concebidos pelo país (exemplos: o novo caça F-35 e os destroyers da classe Zumwalt, cada um dos quais custa US$4,4 mil milhões). Mas as realidades relativas à situação militar real dos EUA são negadas pela sua elite civil. Quanto à opinião pública, grande parte da sua errada percepção de onipotência deve-se a Hollywood. Figuras como o general Patton – que encarava a guerra como uma competição desportiva – foram glorificadas no cinema. E batalhas da II Guerra como a de Kursk, que envolveu três milhões de homens, 8000 tanques e 5000 aviões, ganhavam menos destaque que o desembarque na Sicília.
Mas para a situação presente há razões ainda mais fundas que “a degeneração intelectual geral das elites do poder estado-unidense” (sic) e a sua falta de cultura estratégica. Essas razões são de ordem sistêmica. Os Estados Unidos não precisam conceber e produzir bons sistemas de armas porque a sua existência não está nem nunca esteve ameaçada. Por isso a questão do armamento transformou-se num gigantesco negócio para os oligopólios que o dominam. O próprio sistema de aquisição de armas (procurement), prestando-se a toda classe de corrupção, reflete isso.
Exceto em 1814, no episódio em que a tropa britânica pôs Washington a ferro e fogo e incendiou a Casa Branca (retirando-se a seguir), os EUA nunca foram atacados no seu território. Por isso as suas costas podem permanecer indefesas, nunca houve ameaças de desembarques anfíbios. Esse facto histórico explica em parte a (in)cultura estratégica da sua elite, inclusive a financeira. Também por isso as armas não precisam serem muito boas e nem muito baratas. Elas são feitas para o lucro comercial, é preferível até que sejam caras, pois assim ganham mais. E a sua qualidade é boa só para combater os fracos, adversários subdesenvolvidos como o Iraque.
A ausência de cultura estratégica da elite do poder nos EUA remonta a décadas. Exemplo disso foi a opção monstruosamente dispendiosa pelos porta-aviões, que são mamarrachos imprestáveis para qualquer guerra moderna – servem só para intimidar ou agredir países fracos. Esta opção estratégica foi tomada em detrimento da opção mais moderna e menos custosa dos mísseis, desenvolvida pela URSS e agora pela Rússia. É divertido saber que houve mesmo uma espécie “sindicato” de pilotos da US Navy que se opunha aos mísseis, considerando-os “concorrentes” que poderiam vir a substituir a sua perícia profissional. Chegaram a propor que o alcance dos mísseis não ultrapassasse as 50 milhas…
O divisor de águas
O discurso de Putin em 1º de março deste ano foi um divisor de águas. Foi como o menino da fábula que perante a corte declarou em alto e bom som: “O rei vai nu”. Os novos sistemas de armas apresentados publicamente por Putin mostram a absoluta superioridade militar da Rússia. Já não há paridade. Há, sim, inferioridade dos EUA. As notícias que Putin revelou mostram a US Navy como uma força esvaziada: a frota tornou-se obsoleta e vulnerável diante das novas armas russas. Trata-se de novos mísseis, de armas submarinas autônomas que podem atravessar oceanos e de armas eletrônicas. Destas últimas já havia sido dado um indício com a “apresentação” feita ao USS Donald Cook no Mar Negro, que teve as suas capacidades de combate anuladas (écrans negros) por um caça russo. Quanto à célebre tecnologia furtiva (stealth) de aviões americanos, também elas foram anuladas por novos radares russos e novas tecnologias com base na radiofotônica. “Elas tornam a furtividade completamente obsoleta”, afirma Martyanov. O autor mostra abundantes pormenores técnicos para corroborar a sua análise.
Na guerra da Geórgia (2008), em que forças armadas treinadas pelos EUA atacaram a Ossécia, as forças russas responderam com a estratégia adequadamente chamada de “coerção à paz”. Venceram os agressores e restabeleceram a paz. Tudo indica que esta é a estratégia atual da Rússia: coagir à paz. O imperialismo ainda se comporta agressivamente, como se vê nestes dias na Síria. Mas a força inexorável da realidade dos fatos – a perda de paridade estratégica – acabará por se impor. A atual histeria anti-russa nos EUA, e entre os seus vassalos, tem muito a ver com o desespero. As ilusões de grandeza e o mito triunfalista dos EUA começam a definhar. Gradualmente a sua classe dominante terá de se conformar ao mundo multilateral e a ideologia neocon terá de ser enterrada.
09/Setembro/2018
Ver também:
Comando e controle
Esta resenha encontra-se em http://resistir.info/
* o autor é jornalista, de Portugal.
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