Carlos Eduardo Florence *
A vida se fazia exatamente sonolenta, azul, metódica. Dias longos assistidos cuidadosamente pelas artimanhas das aranhas entrelaçando paredes, escondendo seus silêncios para adornarem os tetos tecendo motivos, melodias. Dava-se existir em passarinhos cantando, jabuticabas amadurecendo, o sol filtrando sensual entre as teias e invadindo pela claraboia.
Raios tais, em sendo sim, eram então véus singelos, tão puros, transvestidos e brincando com a brisa gostosa disfarçada pelas janelas largas. Assim como era o tempo então do ser em ser e só se fazia assim, o ser, porque tudo era muito assim para ser. Refaço este passado, pois não sabia parar, ele, passado, para se presentear e depois se fazer para intentar o futuro o mesmo.
Tal sonhava, eu, e pedia, muito, muito mesmo, para nada mudar e não arruinar os intentos. Era o medo de tudo se acabar para sempre sem eu mais poder beijar os segredos, fantasias, as ilusões. Pelos derredores eram não mais do que preguiças morosas, acomodadas em ruídos macios, abeirando para uns confins dos infinitivos que divisavam com os fundos do pomar do sobrado para depois ganharem os aléns. De então, para os desconhecidos, moravam os medos medonhos que me diziam não cruzar, embora, naquelas pontas, crescessem juntadas de parcerias umas melancolias sem serventia, segundo os antigos, mas não prosperavam ou eram agressivas quando eu chegava bem perto.
Nós ali da morada, desde criança, sentíamos pelos meandros, entre as tábuas largas furadas, sonhos e portais, um sabor doce de delírio com ambrosia, disperso em aconchegos e, se tanto, ao entorno, pois minha avó borrifava, aos pouquinhos, suas mezinhas e benções, no andado lento, arrastado sobre a sabedoria, ensinando o futuro a esperar, pois o presente estava lerdo, enquanto ela alimentava os pássaros, imaginações e dispersava salpicados sorrisos, muito seus, para os apropriados e os momentos.
Domesticadas e silenciosas se acomodavam duas ratazanas em tempo de aposentadoria vagando entre a dispensa, o pretérito imperfeito, uma rosa murcha esquecida no vazo da sala de jantar, os almanaques e livros carunchados e indicávamos ali como biblioteca. Neste envolto medievo abarrotado de prateleiras desordenadas, paradoxos existenciais exóticos amontoados, entre as obras esfacelando, Guanduxo, irmão mais velho de minha avó, esquecido de quando cometera noventa, imitava ler Ilíada, Divina Comédia, a Bíblia, Gregório de Matos, Odisseia, Vieira, os Lusíadas, ou tantos mais, enquanto ensaiava os graves profundos do Fígaro, na cadeira de balanço, para estrear, como afirmava, no Cine Teatro Avenida, que fora demolido há quarenta e nove anos, quando Maria Callas viesse a Esplendor de Mocaçau. Assim era, foi, se foi.
O fantástico e o mágico me corrompiam pelas sombras, contornos e recantos do sobrado centenário onde nos acomodávamos, nascera eu sem até então não arredar o pé e onde gerações se perdiam na memória e na história. Circulava eu pelas paredes, divagados, quadros, poesias, cristaleiras, rangidos, escarradeiras, recantos, medos, encantado com os infinitos sem entender as formas. Rodava por todo ali, em ritmo de complacências e encantos, pelos cômodos, corredores, salas e quartos, puxando um carrinho de rolimã entulhado de bijuterias eloquentes, novidades inimagináveis e ruídos vermelhos, como ela mesma, minha Tia Ancinha, bem descrevia e, convicta, exibia com seu sorriso ingênuo e afetuoso aos fantasmas dos antepassados, seus afetos e protegidos. Resguardava cuidadosamente suas formigas cortadeiras, delicadas, que a acompanhavam pelos cômodos para sugarem, miúdas, de suas mãos os açúcares e doces em calda que lhes oferecia.
Com voz macia as levava Tia Ancinha, no caindo da tarde, para dormirem no alpendre da frente, pois de madrugada se aprontavam, com pontualidade, para atender seu pedido de acordar o sol. Depois que as formigas estavam recolhidas, acomodava os velhos defuntos acarinhados em suas camas e lhes contava estórias infantis para que dormissem tranquilos. Acordava muito cedo e carregava desde então ao ombro a maritaca Remi que aprendera a solfejar em escala de sol e latir como o Capió. Titia se orgulhava de contar até dezessete, suficientes algarismos para saber os números de quartos por onde tresandava o dia todo. Vestia ela um roupão folgado costurado de sacos velhos de adubo emendados com as marcas desbotadas e sandálias de dedos estraçalhadas.
Frequentada em plena vida de alegoria por almas de todos os mantras e cantigas, cozinheira, saudades, arrumadeira, linda, lavadeira, às vezes, convidados, cachorros, bernes, criança, fungando, pescador, mentira, cantador, violeiros, catiras, pois era exatamente ali, neste torvelinho e fé, que se fazia a vida entre a cozinha e o alpendre enormes. Todos voltados em torno das gaiolas penduradas dos passarinhos que filtravam suas melodias para se dizerem canarinhos, cúrios, coleirinhas, azulão, trinca ferros e se davam os demais. Achegavam gentios vários de longas sinas e motivos, conversas de lero-leros sempre, estendidos por aquele aconchego de contos de fadas. O mundo, os embalos, imprevistos e demais inevitáveis preciosos sabores de delírios com tons pueris ocorriam ali, sorriam, faziam-se naquele quadrilátero de magia e sonho. Minha avó atendia a todos na imensidão da sua igualdade e serventia que Deus lhe dera.
Marcava-se imponente e misterioso, protegido pelas preces e afirmações de minha avó, Somésia (Somezinha), Tramaia Alcalunga Dicema, quedando no fim do corredor, a cobrir uma janela inútil, ao lado dos dois últimos quartos, o armário dos impenetráveis e dos interditos onde ela guardava seus sonhos e ilusões para com eles cobrir e proteger as armas, espada e a farda cor de quebranto com almíscar, que seu marido, meu falecido avô, Albargádio Tomasínio Alcalunga Dicema se instrumentara para o inevitável. Fora assim que se preparara ele para assumir, como generalíssimo, a frente do Corpo da Guarda Monarquista de Esplendor do Macaçau. O movimento pretendia destituir todas as autoridades locais, prefeito, juiz de direito, delegado, antes de enviar telegramas definitivos, claros, e expressos aos demais revolucionários patriotas aquartelados nos municípios vizinhos e a beira do Rio Pitomba e cada qual assumindo brava e autoritariamente os comandos locais, para juntos, sob as estratégias definidas por meu avô, navegariam em águas agitadas e corredeiras perigosas, rio acima, até à capital e onde reporiam a realeza chegando do exterior. O movimento frustrou-se, pois fora marcado para o dia vinte e nove de fevereiro em ano que não era bissexto, os revolucionários arregimentados pelo avô Albargádio foram maliciosamente convidados pelos prefeitos republicanos das comunidades para celebrarem juntos o carnaval na sede da Comarca de Ponhatã de Cima.
Todos se embriagaram. O veleiro que transportaria os imperialistas fora requisitado pelo Rei Momo, que recebera a chave da comarca como símbolo dos festejos, e confiscara carnavalescamente a embarcação para transportar a banda de Ponteio da Pedra Velha. Mas ainda para reforçar e deprimir a malograda intentona, os herdeiros da monarquia, descendentes da família lusitana, que já estavam no país, não foram avisados do movimento, não tinham a menor vontade de se envolverem e menos ainda em época de carnaval. Sobraram do movimento o inusitado, o imenso amor de minha avó pelo marido e um aroma debalde do propósito que a nobreza e a aristocracia bateram à porta do sobrado, mas o destino fora cruel.
Guardava vovó, a sete chaves, no mesmo armário fantástico, junto com os sonhos, armas, fardas e dragões monarquistas do vovô, um farnel incontável de utensílios dela para exercer, com muito êxito e ciência, as suas premonições, benções, oratórias, quebrantos e rezas respeitadas por todos em Esplendor de Macaçau e redondezas. Ordenadas em pequenas caixas talhadas com símbolos exotéricos dos rituais e magias, infalíveis, seguiam as peças mediúnicas para celebração dos imprevistos, lupa de enxergar o além, concha de recolher o etéreo e o difuso do fundo do copo com café amanhecido, repousado, virado para o lado da lua cheia em janela do leste do oratório.
Detinha ela na solidão do móvel, sementes e seixos de tamanhos, cores e formas diversas para com eles sentir os tatos e o refluxo dos eventuais, das arbitrariedades, desafetos, angústias, das paixões. Eram estes seus inúmeros tarôs, de origens incontáveis, seus poderes divinos, que só ela traduzia com os olhos vidrados nos imponderáveis e nos inconscientes.
Águas, óleos, pós, misturas efusões das profundezas, abençoadas, esotéricas, poderosas nas curas das malignidades físicas e emocionais, que ela prescrevia com exatidão, crença e resultados. Mantinha ainda no armário um talismã de apalpar o cheiro e o sabor da vida, a definição do sexo a vir à luz, prever doenças a caminho, cataclismo, morte, traição. Patacas antigas a serem apontadas pelos consulentes e só assim nos seus apalpados se tornariam infalíveis para as revelações de vidas eternas, saúde, quebranto, alertas contra desencantos e maus olhados. Pendurados nas portas se colhiam todos os tipos e formas de compassos, triângulos, réguas comuns ou numeradas, heterodoxas, todas entronizadas, santificadas, demoníacas para traçar a exatidão dos horóscopos e dos destinos. Protegidos pelos espíritos de todos os santos e orixás, quedavam os baralhos específicos para responderem, sem titubeios, pelas flutuações do cosmos, das colheitas, para atender moças virgens, semi-virgens, viúvas, as más casadas, traídas, que corneavam. Os baralhos não poderiam jamais ser trocados ou invertidos em seus usos próprios para que os confrontos, fins, astros, fortuna, imponderáveis, não se confundissem e misturassem as almas atendidas. As secções particulares de vovó Somezinha só eram feitas em dias de sol, a partir da madrugada e quando a brisa do noroeste trouxesse o beijo e as benções do Senhor. Caso não houvesse o clima de exaltação, as magias tresandavam. Trajava ela branco para atender até às onze horas, quando o galo índio do fundo do quintal, pontualmente, a avisava do dia sido.
Na prateleira mais alta do mesmo armário enorme de Pinho de Riga, com a sua ripa preta estreita de óleo pregada do alto ao chão, como símbolo eterno do luto, desde que meu avô morrera, guardava vovó os licores de pequi, jabuticaba, framboesa, tangerina de produção de muitos anos que ninguém mais se arriscava. Restavam nesta mesma tábua do móvel descomunal, os cordéis e tarôs para lerem-se os destinos só dos homens, dos animais de estimação e as volubilidades das chuvas e secas. Por último, com o maior carinho e precaução, encontrava-se o vestido com que se casara Vovó Somezinha depois que fugira com Vovô Albargádio de Abadia dos Menestréis, deixando no altar o noivo a que fora prometida pelo pai e que jurou vingança antes de se suicidar.
Cavalgaram dezoito horas, três trocas urdidas no correto do manejo e raça das providências pelo avô, animalada soberba de desenvoltura e fidalguia, ajustando as marchas mais pelas aguadas, mor não deixarem rastreados para as catas dos que vinham no encalço e se deram em ser de corpos e almas, desmilinguidos, em Esplendor do Mocaçau. Não era ali então não mais do que um pouso carecido e pobre de muladeiro e jagunço a beira rio. O vestido era estendido ao sol em cerimônia semanal, depois de passado com muito esmero a ferro em brasa, antes de vovó vesti-lo e exibi-lo a todos nós, inclusive aos cães, às invejas, pássaros, formigas e aos segredos, por não mais do que quinze minutos e devolvido ao armário dos incontáveis e dos sonhos.
Mas o que mais me atraia e queria contar agora nesta prosa de beira de fogão de lenha, nesta hora de acarinhar serão, seria sobre duas famílias de fangas e olócios, vindos de um silêncio dodecafônico desconhecido, como garantiu minha tia, e que chegaram entre o repicar do sino da matriz e uma chuva forte de verão que estragou muita lavoura e carregou, beijou o pé da igreja e um eito baita de criação de Esplendor de Macaçau. Passaram a habitar eles o sótão do sobrado, no começo, em total surdina, sem mesmo nos darmos conta, mas com o tempo foram se assenhoreando dos ventos das cumeeiras, dos pensamentos que andavam soltos pelos corredores, ficaram íntimos das aranhas tecendo suas artimanhas, sentiam o perfume das formigas cortadeiras lambendo os doces, definiam os dias pelos cantos dos pássaros que não chocavam no inverno, se encantavam com os sorrisos das visitas para alimentarem seus filhos, brincavam com os ruídos azuis das nostalgias que se escondiam pelos verdes da solidão e, ainda, pelos...
Bom, vamos apagar o fogo jogando o café requentado e o restado se proseia em outro talvez, pois a noite alongou, as formigas querem acordar o sol e Tia Aninha começará sua ronda interminável. Tio Guanduxo já está entoando seus graves baixos na biblioteca enquanto Maria Callas não chega. O sono apontou e fica para o depois, outro dia mesmo, pois as tramas das fangas e dos Olócios, que dei conta de agadanhar espantado, muito criança eu, no sobrado da Vó Somezinha, ainda me comovem e excitam demasiado.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado em http://carloseduardoflorence.blogspot.com/
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