Luiz
Inácio Lula da Silva
Em
todo o mundo, seja nos países ricos, em desenvolvimento ou pobres, o
acesso a tratamentos médicos mais avançados está cada vez mais
desafiador. Muitos dos doentes não conseguem se beneficiar dos
medicamentos que poderiam curá-los ou pelo menos prolongar as suas
vidas.
A
questão não é mais se existe cura para uma doença — porque, em
muitos casos, ela existe — mas de saber se é possível para o
paciente pagar a conta do tratamento. Milhões de pessoas
encontram-se hoje nessa situação dramática, desesperadora: sabem
que há um remédio capaz de salvá-las e aliviar o seu sofrimento,
mas não conseguem utilizá-lo, devido ao seu custo proibitivo.
Há
uma frustrante e desumana contradição entre admiráveis descobertas
científicas e o seu uso restritivo e excludente.
De
um lado, temos as empresas farmacêuticas, que desenvolvem novas
drogas, com investimentos elevados e testes sofisticados e onerosos.
De outro, temos aqueles que financiam os tratamentos médicos: os
governos, nos sistemas públicos, e as empresas de planos de saúde,
na área privada. No centro de tudo, o paciente, lutando pela vida
com todas as suas forças, mas que não tem condição de pagar para
sobreviver.
Nos
Estados Unidos, onde o presidente Barack Obama trava há anos uma
batalha com a oposição conservadora para estender a cobertura de
saúde a milhões de pessoas. Na Europa, mesmo em países ricos o
sistema público muitas vezes não consegue garantir o pleno acesso
aos novos medicamentos.
No Brasil, cada vez o governo precisa de mais
recursos para os medicamentos que compra e fornece gratuitamente,
inclusive alguns de nova geração. E na África, o HIV atinge
contingentes enormes da população, ao mesmo tempo que doenças
tropicais como a malária, perfeitamente evitáveis, continuam
causando muitas mortes e deixaram de ser priorizadas pelas pesquisas
dos grandes laboratórios.
Um
vídeo que circula na Internet, feito por uma companhia de celular,
tem emocionado o mundo ao mostrar os dramas entrelaçados de um
garoto pobre da Tailândia que tem que roubar para obter remédios
para sua mãe, e o de uma jovem tendo que lidar com as contas
astronômicas de hospital para salvar o seu pai.
Conheço
o drama de ter entes queridos sem um tratamento de saúde digno. Em
1970, perdi minha primeira esposa e meu primeiro filho numa cirurgia
de parto, devido ao mau atendimento hospitalar. Os anos que se
seguiram, de luto e dor, foram dos mais difíceis da minha vida.
Por
outro lado, em 2011, já como ex-presidente, enfrentei e superei um
câncer graças aos modernos recursos de um hospital de excelência,
cobertos pelo meu plano privado de saúde. O tratamento foi longo e
doloroso, mas a competência e atenção dos médicos, e o uso dos
medicamentos de ponta, me permitiram vencer o tumor.
É
fácil ver as empresas farmacêuticas como as vilãs desse processo,
mas isso não resolve a questão. Quase sempre são empresas de
capital aberto, que se financiam principalmente através de ações
nas bolsas de valores, competindo entre si e com outras corporações,
de diversos setores econômicos, para financiar os custos crescentes
das pesquisas e testes com novas drogas. O principal atrativo que
oferecem aos investidores é a lucratividade, mesmo que essa se
choque com as necessidades dos doentes.
Para
dar o retorno pretendido, antes que a patente expire, a nova droga é
vendida a preços absolutamente fora do alcance da maioria das
pessoas. Há tratamentos contra o câncer, por exemplo, que chegam a
custar 40 mil dólares cada aplicação. E, ao contrário do que se
poderia imaginar, a concorrência não está favorecendo a redução
gradativa dos preços, que são cada vez mais altos a cada nova droga
que é produzida. Sem falar que esse modelo, guiado pelo lucro leva
as empresas farmacêuticas a privilegiarem as pesquisas sobre doenças
que dão mais retorno financeiro.
O
alto custo desses tratamentos tem feito com que planos privados
muitas vezes busquem justificativas para não dar acesso a eles, e
que gestores de sistemas públicos de saúde se vejam, em função
dos recursos finitos de que dispõem, frente a um dilema: melhorar o
sistema de saúde como um todo, baseado em padrões médios de
qualidade, ou priorizar o acesso aos tratamentos de ponta, que muitas
vezes são justamente os que podem salvar vidas?
O
preço absurdo dos novos medicamentos tem impedido a chamada economia
de escala: em vez de poucos pagarem muito, os remédios se pagariam —
e seriam muito mais úteis — se fossem acessíveis a mais pessoas.
A
solução, obviamente, não é fácil, mas não podemos nos conformar
com o atual estado de coisas. Até porque ele tende a se agravar na
medida em que mais e mais pessoas reivindicam, com toda a razão, a
democratização do acesso aos novos medicamentos. Quem, em sã
consciência, deixará de lutar pelo melhor tratamento para a doença
do seu pai, sua mãe, seu cônjuge ou seu filho, especialmente se ela
traz grande sofrimento e risco de vida?
Trata-se
de um problema tão grave e de tamanho impacto na vida — ou na
morte — de milhões de pessoas, que deveria merecer uma atenção
especial dos governos e dos órgãos internacionais, e não só de
suas agências de saúde. Não pode na minha opinião continuar sendo
tratado apenas como uma questão técnica ou de mercado. Devemos
transformá-lo em uma verdadeira questão política, mobilizando as
melhores energias dos setores envolvidos, e de outros atores sociais
e econômicos, para equacioná-lo de um modo novo, que seja ao mesmo
tempo viável para quem produz os medicamentos e acessível para
todos os que precisam utilizá-los.
Não
exerço hoje nenhuma função pública, falo apenas como um cidadão
preocupado com o sofrimento desnecessário de tantas pessoas, mas
acho que um desafio político e moral dessa importância deveria ser
objeto de uma conferência internacional convocada pela Organização
Mundial de Saúde, com urgência, na qual os vários segmentos
interessados discutam francamente como compartilhar os custos da
pesquisa científica e industrial com o objetivo de reduzir o preço
do produto final, colocando-o ao alcance de todos que necessitam
dele.
Não
há dúvida de que todos os setores vinculados à medicina avançada
devem ter os seus interesses levados em conta. Mas a decisão entre a
vida e a morte não pode depender de preço.
Luiz
Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil
.