sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Épico

Luis Fernando Veríssimo   
O futebol de calçada era com narração, e o próprio jogador fornecia a narração. Jogava e descrevia sua jogada ao mesmo tempo, e nunca deixava de se autoentusiasmar. "Sensacional, senhores ouvintes!" (Naquele tempo os locutores tratavam o público de "senhores ouvintes".)

"Sensacional! Mata no peito, põe no chão, faz que vai mas não vai, passa por um, por dois... Fau! Foi fau do beque! O juiz não deu! O juiz está comprado, senhores ouvintes!"

Fau era "foul" e beque era "back", na língua daquela terra estranha, o passado. E o juiz, claro, era imaginário. Tudo era imaginário no futebol de calçada, a começar pela nossa genialidade. A bola era de borracha, quando não era qualquer coisa remotamente redonda. A bola número cinco oficial de couro ganha no Natal não aparecia na calçada, tá doido? Estragar uma bola de futebol novinha jogando futebol?

Mas éramos gênios na nossa própria narração.

"Lá vai ele de novo. Cabeça erguida! Passa a bola e corre para receber de volta... Que lance! O passe não vem! Não lhe devolvem a bola! Assim não dá, senhores ouvintes... Só ele joga nesse time!"

A narração dava um toque épico ao futebol. Lembro que na primeira vez em que fui a um campo, acostumado a só ouvir futebol pelo rádio, senti falta de alguma coisa que não sabia o que era. Tudo era maravilhoso, o público, o cheiro de grama, os ídolos que eu conhecia de fotografias desbotadas no jornal ali, em cores vivas... Mas faltava alguma coisa. Faltava uma voz me dizendo que o que eu estava vendo era mais do que estava vendo. Faltava a narrativa heroica. Faltava o Homero.

Na calçada éramos os nossos próprios heróis e os nossos próprios Homeros.

"Atenção. Ele olha para o gol. Vai chutar. Lá vai a bomba. O goleiro treme. Ele chuta! A bola toma efeito. Entra pela janela. E lá vem a mãe, senhores ouvintes! A mãe invade o campo. Ele tenta se esquivar. Dá um drible espetacular na mãe. Dois. A mãe pega ele pela orelha. Pela orelha! E o juiz não vê isso!"

Mesmo se nem tudo merecesse o toque épico.

Publicado em O Estado de S.Paulo / 26 de setembro de 2013
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,epico-,1078961,0.htm

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Um comentário:

  1. Fernando Cardoso-USP.ESALQ 19361 de novembro de 2013 às 21:46

    Futebol, futebol, futebol, sempre a bola dando origem a essa bela crônica. Merece também ser comentado o feito corajoso de Carlos Burle, lá na praia de Nazaré/Port., frente à montanha de água da altura de 11 andares, despencando logo atrás dele, quase sobre ele. A arrebentação o alcançou e ele caiu, o que não tira o mérito do arrojo e disposição de tomar riscos. Merece nossa felicitação e admiração. É um valente e dedicado esportista.

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