sábado, 16 de abril de 2016

Mentes perigosas: o Brasil sob Estado de Exceção


Márcio Sotelo Felippe * Procurador do Estado

Em 1934 Carl Schmitt, o príncipe dos juristas nazistas, escreveu um artigo denominado “O Fuhrer protege o Direito”.

A adesão de Carl Schmitt ao nazismo não foi produto do oportunismo ou de ocasião. Antes da ascensão de Hitler já era um teórico renomado, havia escrito parte de sua obra, até hoje celebrada pela direita e por alguns intelectuais de esquerda. Não à toa uma importante biografia teórica sua tem o sugestivo título de A Dangerous Mind, por Jan-Werner Müller ("Uma mente perigosa"). A adesão de Schmitt ao nazismo tinha perfeita coerência com seu opúsculo Teologia Política, de 1922, publicado quando Hitler ainda era praticamente um vagabundo. A edição brasileira tem apresentação de Eros Grau, que não esconde seu entusiasmo pela Filosofia do Direito de Schmitt.

O texto começa com a célebre frase “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Schmitt dizia que o Estado moderno deve ser entendido por meio de conceitos teológicos secularizados. O Deus onipotente tornou-se o legislador onipotente. O estado de exceção está para o Direito assim como o milagre está para a Teologia. O milagre é tão legítimo quanto o curso regular das leis naturais e integra o todo; o soberano – Deus - que decide pelo milagre assim o faz porque leis gerais e regulares não dão conta da Criação. A exceção, o milagre, é uma necessidade. Do mesmo modo, um ordenamento positivo não dá conta de situações excepcionais. Há momentos em que afastar a norma e instaurar a exceção é necessário e é parte do Direito, tal como o milagre é necessário e é parte da Criação.

Em síntese, Direito é decisão. Quem diz a regra, diz também se e quando ela se aplica. Nesse quadro teórico, pareceu a Schmitt que Hitler podia fazer picadinho da Constituição de Weimar (formalmente em vigor até o fim da II Guerra). Hitler não descumpria o Direito. Protegia o Direito, como deixa claro o seu artigo de 1934. É bem verdade que Schmitt também caiu em desgraça no III Reich logo depois, o que jamais nos autorizará a dizer que não se tratava mesmo de uma “dangerous mind”. Apesar de seu feroz antissemitismo, foi acusado, entre outras coisas, de não ser antissemita o suficiente e caiu em desgraça.

Somente se compreende um conceito em sua integralidade entendendo com quem ele dialoga. O inimigo (palavra cara ao conceito de político de Schmitt) era o Iluminismo e a ideia correspondente de racionalidade. A racionalidade iluminista do Direito, com seus preceitos e normas genéricas, não podia contemplar a exceção e daí a necessidade de incluir a exceção no Direito: "o soberano se coloca fora da ordem jurídica normalmente vigente, porém a ela pertence, pois ele é competente para a decisão sobre se a Constituição pode ser suspensa in toto” (Teologia Política).

Essa ordem de conceitos seria estranha ao Brasil de hoje? Muitos de nós temos sustentado que, no mínimo a partir do julgamento da Ação Penal 470 pelo STF, estamos em estado de exceção e a Constituição de 1988 está em gradativo processo de suspensão. Isto não vem sendo feito integralmente “à la Schmitt”. Não com, digamos, o corpo de Schmitt (ou seja, com uma ditadura escancarada), mas com o seu espírito.

Vejamos, nesse sentido, a amigável apresentação de Eros Grau à edição brasileira da Teologia Política de Carl Schmitt:

Na tarefa de concretização da Constituição, o Judiciário – especialmente o Supremo Tribunal Federal – deve aplicar-se a prover a força normativa da Constituição e sua função estabilizadora, reportando-se à integridade da ordem concreta da qual ela é a representação mais elevada no plano do direito posto. A sua mais prudente aplicação, nas situações de exceção, pode corresponder exatamente à desaplicação de suas normas a essas situações. A tanto leva a prática da interpretação da Constituição, que supõe caminharmos de um ponto a outro, do universal ao singular, através do particular, conferindo a carga de contingencialidade que faltava para tornar plenamente contingencial o singular. Daí que ela exige a consideração não apenas dos textos normativos, mas também de elementos do mundo do ser, os fatos do caso e a realidade no seio e âmbito da qual a decisão em cada situação há de ser tomada”. (Grifei)

Não podia ser mais claro. Quem é o soberano que decide sobre o estado de exceção? Quem decide se aplica ou não a Constituição? O próprio STF, que todos nós, inocentes, pensávamos ser o guardião da Constituição e o faz “levando em consideração elementos do mundo do ser” e, por meio da interpretação, procede à “desaplicação de suas normas”. E assim, por exemplo, foi-se a presunção constitucional da inocência.

A coisa é essa. O ex-ministro Eros Grau é ilustrado para saber o nome da coisa. Outros talvez não saibam o nome da coisa, mas conhecem a coisa.

A suspensão do texto normativo constitucional pelo Judiciário, o soberano, que ora equivale ao Deus onipotente dando uma “arrumada” no Brasil contemporâneo, não se resume ao Supremo. Juízes de primeira instância se arrogam o direito de suspender a Constituição para dela extirpar a cláusula pétrea do devido processo legal, das garantias fundamentais e da dignidade humana. Vejamos um texto do soberano de Curitiba:

“[Submeter] os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a suspeita de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso de manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de confissão”.

(...)
A prisão pré-julgamento é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial, especialmente em sistemas judiciais morosos”. As passagens são anteriores à Lava Jato e as recolhi de Margarida Maria Lacombe Camargo.

Impor sofrimento, tormento, angústia a uma pessoa para obter uma confissão, prendendo-a e tornando claro que sua angústia cessará se disser o que o inquisidor – desculpe, o juiz – quer ouvir tem um nome.

As garantias fundamentais estão, pois, suspensas. A partir de Curitiba vivemos um estado de exceção, e, o mais grave, o texto constitucional suspenso é, fundamentalmente, o da dignidade humana, como desavergonhadamente confessa o soberano de Curitiba ao defender o sofrimento como meio para obter provas judiciais.

E, por fim, o estado de exceção que vivemos se perfaz ainda com o impeachment (ou tentativa de impeachment, no momento em que escrevo) da presidenta. Aqui juristas oportunistas, com perfeito espírito schmittiano, com o auxílio da grande mídia, defendem, ao fim e ao cabo, não aplicar a norma constitucional que exige crime de responsabilidade para aplicar outra, inexistente na Carta: o voto de desconfiança do regime parlamentarista.

Avançando para a madrugada de quinta para sexta-feira, o STF julgou ações relacionadas com o rito do impeachment. Mesmo ministros que se portaram como verdadeiros juízes, dignos e íntegros, como Marco Aurélio e Lewandowsky, não disseram que o rei está nu: não há na denúncia oferecida à Câmara o mais remoto resquício de crime de reponsabilidade. E isto era a questão prejudicial de lógica-jurídica. Como é possível que se ignore texto tão claro? Somente podemos entender com a ajuda infeliz de Eros Grau: O STF, atento ao mundo do ser, interpreta desaplicando a Constituição. Qual é esse mundo do ser, o que ele significa e por que se impõe – o que seria a única questão científica válida – simplesmente não importa. Nem para Eros, nem para Carl Schmitt. Então é como a teologia de Dostoievski nos Irmãos Karamazov: tudo é possível se Deus não existe. Tudo é possível se a norma constitucional, inclusive a norma constitucional da dignidade humana, pode ser descumprida. Melhor a advertência teológica de Dostoievski do que a teologia irracional de Schmitt.

Penso que o prestígio como teórico de Carl Schmitt deve-se à sua brilhante e clara escrita, com o fascínio que uma lógica aparentemente bem construída sempre exerce, destinada a fundamentar o poder como coisa (reificada, abstraída das efetivas relações humanas e sociais), o que parece ser algo que exerce uma atração quase irresistível para o espírito humano.

Impressiona que um texto como Teologia Política, recheado de expressões ocas, abertas, ao gosto das velharias do pensamento jurídico burguês, como ordem, caos, bem-estar, defesa do Estado, velharias da mistificação ideológica jurídica burguesa, seja um clássico até mesmo para uma parte da esquerda. E nesse fascínio ignora que o contraponto a isto tudo é a ideia de direitos. A partir disto não sobra um tijolo do edifício teórico de Schmitt.

Se o golpe parlamentar vier, que o STF cumpra seu papel de guardião da Constituição. Com Kant, e não com Carl Schmitt, para que mentes perigosas não nos tiranizem sob um estado de exceção não declarado.


* o autor é pós-graduado em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e Procurador do Estado. Exerceu o cargo de Procurador-Geral do Estado de 1995 a 2000. Membro da Comissão da Verdade da OAB Federal.

Publicado originalmente em: http://justificando.com/2016/04/16/mentes-perigosas-o-brasil-sob-estado-de-excecao/

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