Evaristo E. de Miranda *
A agricultura brasileira herdou um legado da civilização árabe-muçulmana da Península Ibérica. Essa presença é indelével na origem árabe do nome de produtos agrícolas como café, arroz, açúcar, laranja e algodão ou em medidas associadas como alqueire, arroba e almude. Ela marca ainda o mundo rural do Nordeste: rês, gibão, açude, amofinar, cuscuz, ciranda, xarope etc. A agricultura próspera dos séculos XI ao XIV resultou em parte da elaboração de novas técnicas pelos agrônomos árabes, como as de Ibn Al Awan, considerado pai ou patrono da agronomia, o equivalente de Hipócrates para a medicina. Esse agrônomo árabe-andaluz morreu em Sevilha em 1145.
Ciência
Na Antiguidade, autores gregos e latinos trataram de reunir os conhecimentos disponíveis sobre técnicas agropecuárias. Entre os gregos, destacam-se Hesíodo (Trabalho e Dias), Aristóteles (História dos Animais), Teofrasto (História das Plantas), Eratósteno de Cirena (Tratados de Astronomia), Aratos de Soles (Fenômeno) e Nicandro de Colofan (Teríacos). Entre os latinos, Catão o Antigo (Da Agricultura), Varron de Reata (Res Rusticae), Cícero, Columelo e Virgílio (Geórgicas).
Essas obras não são consideradas científicas. A civilização árabe criou as bases de uma ciência agronômica, ultrapassando a simples cumulação de conhecimentos empíricos. E a agricultura mediterrânica conheceu aperfeiçoamentos sem precedentes.
Jardins de ensaios
Ibn Al Awan forjou vários conceitos agronômicos originais. E deu origem à agronomia como ciência de observação e experimentação. Ele abriu perspectivas para os conceitos novos e à interpretação racional das práticas empíricas, dominadas durante muito tempo por ritos e superstições. Seus experimentos, com diversas técnicas e instrumentos, deram à aração uma base material e racional, liberando-a dos sentidos místicos e sobrenaturais que a cercavam.
Com cerca de 1500 páginas, o “Livro da Agricultura”, de Ibn Al Awan, é um tratado de agronomia. Ele é o resultado da leitura completa de autores gregos, latinos, egípcios, caldeus, persas etc., sustentada por experimentos realizados na região de Granada e Sevilha. Às técnicas identificadas pela leitura, ele agregava os conhecimentos locais. Sem preconceitos, ele testava-as em palácios dos califas de Sevilha. Esse apoio necessário à experimentação e ao teste de suas técnicas fazia tais locais funcionarem como “jardins de ensaios” ou “campos experimentais”.
Os agrônomos andaluzes atingiram um grande desenvolvimento no controle do material vegetal e dos fatores da produção agrícola, sobretudo com relação à água. Desde sua época, Ibn Al Awan foi reconhecido como pai da agronomia. Em sua obra Prolegômenos, Ibn Khaldoun indica-o como autor do tratado de agricultura que eliminou todas as prescrições supersticiosas e talismânicas dos sistemas de cultivo. A obra de Ibn Al Awan é composta de 35 capítulos em três volumes. Eis seus tópicos principais.
Solos, fertilizantes e água
O livro começa com a base da agricultura: os solos. No primeiro capítulo são identificados cerca de 12 categorias de solos, cuja origem é explicada pela desagregação das rochas e sua decomposição através da ação da água e do calor. As características para indicar uma boa terra são minuciosamente descritas, assim como métodos de recuperação e melhoramento de solos considerados ruins ou inaptos à agricultura.
O segundo capítulo trata de fertilizantes. Além de uma classificação de diversos tipos e técnicas possíveis para preparação de diversos compostos orgânicos, ele fornece indicações sobre a utilização de margas e calcários, analisa as épocas mais convenientes de aplicação de fertilizantes e as árvores e plantas que se acomodam ou não aos diversos tipos de fertilização.
O capítulo terceiro é sobre irrigação, fala da água e de seus diversos tipos, sua adequação a cada tipo de planta. Trata-se ainda da construção de poços, do nivelamento das terras e de várias técnicas e métodos de irrigação (submersão, quadros, pites etc.).
Divisão prática
A concepção dos orientais identifica a árvore como um homem de cabeça para baixo. Os gregos atribuíam uma alma vegetativa às árvores. Muitas dessas crenças subsistem até hoje: plantas reagem à inveja, protegem a casa etc. Existiam divisões astrológicas das plantas: árvores da lua, solares ou sob a influência dos sete planetas. Ibn Al Awan impôs uma divisão prática e utilitária das árvores (frutíferas, forrageiras, que produzem madeira de qualidade, essências etc.).
Ele distingue a reprodução sexuada nas árvores. O capítulo XIII se intitula “Fecundação artificial das árvores”. Sua obra trata detalhadamente do cultivo de 151 espécies de árvores abordando técnicas de propagação, meios de multiplicação, plantação, conduta, poda, enxertia e tratamentos fitossanitários. O capítulo XVI trata da conservação dos frutos e sementes. Ele evoca desde os cuidados na colheita até as precauções recomendadas na conservação de frutos frescos ou secos. São indicadas várias técnicas para transformar frutos não comestíveis em alimentos, sobretudo em caso de penúria.
As plantas têxteis (algodão, linho e hibisco) foram estudadas. Ibn Al Awan pesquisou o algodão herbáceo, mas tratou também do arbóreo. Sua descrição dos sistemas produtivos de algodão foi especialmente traduzida para o francês com o objetivo de orientar, nos fins do século XIX, a cultura nas possessões francesas da África. O Livro da Agricultura embarcava com os colonos para orientá-los nas atividades agropecuárias. Nessa parte do livro encontram-se observações sobre as culturas forrageiras e, particularmente, sobre a alfafa.
Na jardinagem são tratadas plantas olerícolas, aromáticas, ornamentais e medicinais. Amplo espaço é consagrado às cucurbitáceas: melões, melancias, abóboras e pepinos, dos tipos mais diversos. Muitas variedades eram semeadas em estufas para a obtenção de melões precoces, por exemplo. Na obra, não há um só artigo sobre plantas comestíveis que não indique vários procedimentos e modos de preparação culinária, além do detalhamento do sistema de cultivo, da natureza de solos convenientes e os tipos de fertilizantes apropriados. Cada artigo é acompanhado de uma sinonímia, muito importante no caso das rosáceas, por exemplo, numa época em que a sistemática vegetal ainda não existia. A cana-de-açúcar está entre os vegetais cultivados na Espanha árabe e fornece uma data precisa sobre sua introdução na Europa. Os capítulos relativos aos cereais são os mais longos da obra.
Calendário solar
Os muçulmanos seguem o calendário lunar e o começo de cada ano varia. Os trabalhos agrícolas, organizados pelo ciclo solar, levaram Ibn Al Awan a criar seu calendário solar. Para cada mês são dados os nomes equivalentes latinos, sírios e mesmo persas. O calendário é acompanhado de observações e prognósticos meteorológicos: para o dia seguinte ou da manhã para a tarde e para vários dias ou meses. Os sinais precursores são classificados entre os de primeira ordem e os secundários. Vários tipos de chuvas são classificados. O parágrafo dedicado aos ventos descreve uma rosa de 16 direções.
Animais e veterinária
Com exceção de suínos, todos os animais domésticos são estudados segundo uma lógica constante: escolha dos animais, seleção, reprodução, estabulação, alimentação e aspectos sanitários. Os cavalos, paixão conhecida dos árabes, estão em um tomo inteiro da obra de Ibn Al Awan. Cento e onze enfermidades são descritas no capítulo XXXIII. Apresenta receitas de mais de 20 colírios para cavalos.
Em homenagem à veterinária, o título do capítulo merece ser citado: “Tratamento de algumas das doenças que sobrevêm aos cavalos nas diversas partes do corpo. (…) Sintomas e diagnósticos para as doenças; remédios. Esta parte da ciência é a medicina veterinária”. A última parte de seu livro sobre animais trata de avicultura (um parágrafo é dedicado à incubação artificial dos ovos) e, no sentido amplo, da criação de pombos, galinhas, pavões, patos e gansos. O artigo III do capítulo trata da fabricação de foie gras. E o último artigo, que encerra o tratado, é dedicado à apicultura.
A obra de Ibn Al Awan contextualiza as condições históricas que permitiram à agronomia andaluza um progresso tal, que marcaria a agricultura europeia até o século XIX. No Marrocos, uma revista de agronomia análoga à Bragantia no Brasil, chama-se Al Awamia. A obra de Ibn Al Awan é um exemplo para os agrônomos e veterinários. Além dos aspectos técnicos, ela revela a importância do contexto social e político no processo de geração e adoção de tecnologia agropecuária.
* o autor é engenheiro agrônomo, doutor em ecologia, Chefe-Geral da Embrapa Monitoramento por Satélite.
Publicado originalmente na revista Agro DBO - outubro 2017, em homenagem ao dia do engenheiro agrônomo, 12/out/2017.
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