Rinaldo Arruda *
Olhando no retrovisor o caminhoneiro Vilmar viu o carro se aproximando rápido, já no topo da longa subida, quando sua velocidade diminuía.
- Maria, se prepara, segura firme, se esse cara me passar mais uma vez vou jogar a carreta em cima dele.
Vilmar resolveu trazer a mulher junto nessa viagem para Juína, no nortão matogrossense. O asfalto tinha chegado até lá, já não era tão difícil como antigamente.
Mas agora o problema era outro. Se antes a estrada, a lama, os buracos, as pontes destruídas paravam os caminhões e estabeleciam uma solidariedade entre todos naquele mundo de dificuldades, agora eram os assaltos às carretas carregadas que preocupavam e era cada um por si. O asfalto não pára ninguém, todos se movimentando de um ponto ao outro, ninguém para mais para ajudar.
Eram muitos os assaltos no trecho, por isso Vilmar só viajava de dia, assim como outros caminhoneiros.
Já ia passando Campo Novo do Parecis, lá onde Mato Grosso parece um mar, só que de soja, o verde plano se espalhando de horizonte a horizonte, só cortado pela fita de asfalto e pelos linhões de energia elétrica, torres gigantes em fila até se perder de vista, como guardiões, como sentinelas robóticas alienígenas desse mar de soja.
Então, nessa paisagem estranha, é a mulher que vê primeiro: um carro parado e um homem apontando uma máquina fotográfica para eles na carreta. Conforme foi se aproximando Vilmar percebe os sucessivos cliques da máquina. Passa por ele, vê pelo espelho que o homem entra no carro e devagar volta para o asfalto, seguindo sua carreta.
Esquisito, comenta com a mulher. Logo o carro os alcança, ultrapassa e perde-se na distância.
Continuam navegando no estranho e tedioso mar de soja, por sobre a fita cinza negra do asfalto.
Passou-se um tempo, já tinha até esquecido o fotógrafo, distraiam-se olhando o movimento de um avião pulverizando as plantações. De repente, olha de novo o carro parado ali! É o mesmo carro, o mesmo fotógrafo que lhes aponta novamente a máquina, diretamente para a frente do caminhão. Passam apreensivos, sentindo-se perseguidos...
Fala pelo rádio com a central, a mulher tinha anotado a placa do carro. Pedem para verificar. Dali a pouco chega a resposta: o numero da placa corresponde a um carro Monza, não a um Pajero.
Tiveram certeza: placa falsa, provavelmente carro roubado, bandido na certa. Por que as fotografias? Será que envia de algum modo pela internet para outros o interceptarem???
Seguiram em frente com grande apreensão, comunicaram a sua central que estavam sendo seguidos por um carro suspeito. A central diz para ficar em contato, não se arriscar, não parar para conversar, parar num posto de gasolina.
Pelo retrovisor vê novamente o carro se aproximando rápido. Fala para a mulher: se segure, dependendo se ele me passar vou jogar o caminhão para cima dele!
O fotógrafo
Durante muito tempo vinha praticamente todos os anos para o Mato Grosso. Na década de 1980, jovem antropólogo, pesquisou os Rikbaktsa, povo indígena da bacia do rio Juruena. Viu aquela região no início dessa última onda de colonização, que instalou o modelo atual de ocupação, baseado na monocultura da soja e na criação extensiva do gado. Quer dizer, conheceu aquela região quando sua mata estava em pé e os habitantes de lá viviam dela, da floresta. O avanço da agricultura industrial, da rede rodoviária, das hidrelétricas, da expulsão do homem do campo, do inchamento das cidades, da lógica e das práticas capitalistas a vinha desfigurando desde então.
Fazia cerca de 10 anos que não visitava os Rikbaktsa. Nos últimos anos alguns deles é que o visitaram em São Paulo, reacendendo a saudade dos muitos amigos e conhecidos que lá fizera e da região em que vivera alguns anos. Resolveu visitá-los nas férias de janeiro.
Chovia sem parar desde que chegara a Cuiabá, dois dias atrás. Hoje seguia para Campo Novo do Parecis e de lá iria para Brasnorte. Dormiria lá e na manhã seguinte seguiria até a aldeia do Barranco Vermelho, já dentro da terra indígena Rikbaktsa.
Parou a chuva pouco depois de Campo Novo do Parecis, quando o mar de soja se tornava absoluto, dominando os 360 graus da paisagem. Os linhões de energia elétrica de alta voltagem seguiam a perder de vista na paisagem plana. Altas torres, com braços e formas estranhas segurando fios de horizonte a horizonte por sobre um tapete verde uniforme. Paisagem quase alienígena, estranhíssima para quem havia conhecido a exuberância e a variedade das matas que a cobriam.
- Putz! Que paisagem louca! Olha essas nuvens pesadas emoldurando a cena!
Parei o carro para fazer umas fotos. Foto difícil. Difícil passar na imagem a grandiosidade depressiva dessa uniformidade. Quando a gente fotografa fica parecendo sem graça, nenhum contraste, nenhuma variedade, nada que estimule ou desafie o olhar. Mas, vamos lá.
Desci do carro bem quando na estrada vazia surgia um caminhão. Deixei-o se aproximar e quando estava perto cliquei várias vezes, aproveitando a linha cinzenta do asfalto e o caminhão se aproximando para criar um ponto de ruptura, permitindo ao olhar perceber a escala da cena.
Várias fotos depois segui viagem, de novo naquela monotonia de mais soja a perder de vista, vigiadas por fileiras de torres de aço enormes ligadas por fios de alta voltagem até além do horizonte.
Subitamente, um ponto em movimento. Um avião monomotor vermelho, bem pequeno, voava baixo, pouco acima da soja, pulverizando a plantação. Ia longe e voltava até a estrada, ultrapassava-a, fazia uma volta apertada, quase uma acrobacia e voltava pulverizando. Parei de novo para fotografar.
Bem quando o avião subia numa curva acrobática sobre a estrada estava passando um caminhão, quase estragando a cena. Cliquei várias vezes tentando fixar várias posições do avião temendo que o caminhão avançasse demais roubando a cena.
Já no entroncamento para Brasnorte avistei desde longe o gigantesco armazém de soja com o nome da família Maggi, letras enormes, ocupando toda uma lateral, ao lado de um posto de gasolina. Meio com preguiça de parar de novo, fotografei da janela, sem sair do carro, esse lugar de entesouramento de toda aquela linha de produção vegetal, do maior produtor de soja do mundo.
Segui em frente, alcancei Brasnorte, procurei uma pousada, deixei minhas coisas no quarto e de lá saí para jantar.
Vilmar
Vilmar segurava firme a direção com um sentimento meio ruim no peito, sem tirar o olho do retrovisor, enquanto seu perseguidor se aproximava rápido. Na última hora vacilou. Quando viu, o carro, bem mais veloz, já terminava a ultrapassagem distanciando-se na estrada à sua frente.
- E se ele não for assaltante? Não deu para jogar a carreta...
- Você fez bem Vilmar, acho que ele já foi embora, o apoiou Maria.
Estavam chegando no posto de gasolina, bem no entroncamento para Brasnorte quando veem o carro parado na beira da estrada; esperando por eles?
Vilmar entra no posto já falando alto, pedindo socorro. – Estamos sendo seguidos por um carro suspeito, olha ele ali, parado. Os funcionários do posto saem para olhar e o carro se afasta em direção à Brasnorte.
Ligam para a polícia da cidade e contam toda a história, pedindo proteção.
- Não saia daí, vamos já para aí. Qual é a placa do carro? Antes de sair conferem a placa e confirmam que é mesmo de um carro Monza e não de um Pajero.
Meia hora depois já encontram seu Vilmar e dona Maria, escoltando-os até Brasnorte. A polícia local procura o carro suspeito na cidade e ao redor, enquanto Vilmar e a mulher resolvem dormir em Brasnorte e seguir viagem só no outro dia, pois já anoitecia.
O professor
Eu estava na mesa esperando servir o comercial. A moça já tinha trazido a coca-cola, estavam preparando o resto da comida, quando chegaram os policiais.
Estavam parados lá fora, perto da porta, me olhando. Entraram e aproximando-se: - O pajero parado em frente é seu?
-É...
- Tem documento?
- Claro, está no carro. Levantei e fomos andando para lá.
Várias perguntas meio estranhas depois (de onde era, o que fazia, se tinha documento provando que era professor, o que estava fazendo ali, etc.) o policial dispara numa pergunta meio acusadora: - Você fotografou uma carreta hoje à tarde lá na estrada, depois de Campo Novo dos Parecis?
- Provavelmente fotografei até mais de uma carreta, fotografei plantações de soja, armazéns, silos, várias paisagens, a estrada. Como disse, estou numa viagem meio de turismo, vim parando, tirando fotos do que achei interessante. Qual o problema?
Estava mais calmo, até achando tudo meio engraçado. Com quem estavam me confundindo? Falei que era professor da PUC de São Paulo, mostrei a carteirinha de sócio da associação de professores, meus documentos, conversamos numa boa e eles foram relaxando, percebendo o equívoco.
Me disseram como explicação: “Desculpe professor, estamos apenas fazendo nosso trabalho. O motorista de uma carreta achou que o estava perseguindo, nos chamou, queria vir tirar satisfação com você. Dissemos para ele esperar que nós íamos verificar primeiro.
- Já percebemos que a mulher dele anotou uma letra errada da sua placa, como o número era de um Monza achamos que seu carro era roubado. Agora está tudo em ordem. Desculpe, pode jantar sossegado.
Voltei, refletindo sobre o absurdo da situação. Chegou meu comercial, comi com apetite e saí para pegar o carro e ir dormir no hotel. Pensava se os policiais ainda não estariam ali por perto, queria pedir a eles que me desculpassem junto ao caminhoneiro por tê-lo assustado inadvertidamente.
Os policiais não estavam à vista, mas lá fora estavam Vilmar, sua mulher e mais dois caminhoneiros como apoio, me esperando sair.
Vilmar já havia sido esclarecido pela policia, mas a desconfiança ainda teimava em botar a cabeça de fora. Chamou dois caminhoneiros conhecidos para acompanhá-lo numa conversa comigo, só como garantia de segurança.
Foi só aí que eu soube de sua angústia e das coincidências que pareciam reafirmar cada vez mais que eu o perseguia. Minha última parada para fotografar o armazém do Maggi fora a gota d’água. Teve certeza absoluta que eu tramava algo contra ele! No seu entendimento, naquele momento já sabiam que eu era bandido pois minha placa era falsa e quando me viram parado ali, bem no entroncamento, onde ele teria que parar antes de virar em direção a Brasnorte, teve certeza que seria atacado de alguma maneira.
Entrou no posto em busca de socorro, pensando: - Consegui escapar na hora H!
E eu, gelei de repente, minha adrenalina bombou meu coração quando percebi que quase fora morto. Só não jogou a carreta em cima do meu carro por um triz, vacilou, ele ia mesmo jogar, alguma coisa indefinida o conteve, um laivo de uma dúvida. E se ele matasse um inocente?
Conversamos bastante, repetimos muitas vezes a história, ele a dele e eu a minha, até que os dois descarregaram a tensão. A dele de uma tarde inteira e a minha, só da última meia hora, mas que veio forte e intensa quando percebi que por pouco não morri ali, naquele mar de soja, vitima de um equívoco, construído em cima de uma série de pequenas coincidências.
Mas, me pergunto, como fiz a ele, por que um homem parado na beira de uma estrada tirando fotografias pode ser ameaçador dessa maneira? O cara ia me matar! Ou a polícia poderia!
Que mundo é esse em que vivemos? Tá todo mundo louco?
* Rinaldo Arruda, na aldeia Primavera, em janeiro de 2011, onde cheguei a salvo, e olhando bem ao redor antes de fotografar qualquer outra coisa.
O autor é mestre e doutor em antropologia e professor aposentado pela PUC/SP; é autor de diversos livros, entre eles "Os Rikbaktsa: mudança e tradição". Foi presidente do Conselho Diretor da Operação Amazônia Nativa - OPAN por 3 gestões e tem dezenas de estudos e pesquisas científicas publicadas.
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