domingo, 31 de março de 2013

Do You Wanna Dance?


Celso Luiz Marangoni
Beatles 1963/2013 - 50 anos de sonho
Foi assim, logo depois do almoço. Bandos de nuvens cinzas despencando na ventania do céu a uma da tarde. Frio.
Um frio antigo e cheio de cachecóis garoando em tudo. Uma garoa mansa, de muito tempo, beijando o velhinho mendigo, boné azul, abraçado a seu terno encardido no banco do Trianon. E lá adiante, a algazarra dos adolescentes em frente ao Gazeta.
(Antes da travessia...)

E a garoa vai beijando e dizendo, sem dizer, com sua voz sumidinha de chuva anã: "All you need is love... love... love!"
O sinal fecha. Um ônibus cheio de sonâmbulos freia.
Uma praga qualquer sai da boca do motorista, flutúa no silêncio e morre no fastio do cotovelo dele debruçado no volante.


O sinal vai abrir e ele olha ao longe, através da tela de vidro do painel, uma terra imaginária, com o cartão premiado da loto caindo do céu, molhado e abençoado pela água benta da garoa.

Ninguém vê quatro rapazes atravessando sozinhos na faixa de pedestres: um vestido de branco, outro de agente funerário, o terceiro de jeans, o último de traje a rigor e...  descalço!

Não! Não é mais a Avenida Paulista! A avenida estreitou, pariu árvores verdes e também antigas, como há muitos séculos.

Olho na placa. Em vez de Avenida Paulista leio: "Abbey Road"...
Esfrego os olhos.
Leio outra vez: Abbey-road!
Êi! Algo aconteceu! Finalmente, algo aconteceu!
Algo de consistente, de real, na acepção da palavra.
Algo que conseguisse sacudir a pasmaceira geral das monótonas horas de almoço e seus executivos-cabides, com terninhos pendurados às costas, as mãos amarradas atrás do corpo e aquele ar de assunto sério amarrando eles e amarrando com eles os altos negócios, os altos escalões e a baixa renda do meu país.

Algo aconteceu! Estamos em pleno 1967 e eu não estou mais voltando da minha hora de almoço.
Não! Eu estou é indo pra casa da namoradinha, aquele jasmim-do-cabo exalado por todos os poros, aqueles cabelos pretos saídos do banho, aquele beijo interminável disparando e fervendo o coração da gente.
Oh! Darling, if you left me! Oh! no! Dont let me down!

O mundo sem você é só um almoço executivo!
Não se vá, please please me oh! yeah!
I want to hold your hand! Help! Help me you!
Vamos assistir "Easy Rider" com Peter Fonda, rodar nossas motocicletas até os confins do horizonte.

Não! O sonho não acabou baby! Não se esqueça de que John Lennon ainda está vivo. Mcluhan diz que o mundo é uma aldeia global e Janis Joplin e Jimmy Hendrix sequer sonharam em aparecer. É 1967 esqueceu?

O mundo é um imenso baile de formatura com Johnny Rivers e "Do you wanna dance" ao fundo.
A gente mora junto no meu apartamento, bebe e come um ao outro e nosso orgasmo vem enfeitado de "Make love, not war". Pois é o que fazemos, não é mesmo baby?

Somos a pombinha branca trazendo uma folha de hortelã e melissa pra acalmar o napalm sobre o Vietcong.
E todo nosso amanhã, todo nosso amanhã é este som dos Byrds gritando "Mr. Tambourine Man" ao nosso coração de arcanjo cósmico, incapaz de imaginar que o homem é mau, baby.
Pois é, como imaginar? Se John Lennon ainda nem lançou "Imagine", não é mesmo? Pura bobagem.
A vida é este filme: take one: à tarde make love. Take two: à noite a rota dos barzinhos.
E depois, meia dúzia de dramas existenciais gorgolejando, ralo afora, junto ao shampoo de nossos cabelos compridos.

Acreditamos. Foi isso! Acreditamos, como talvez em nenhum outro tempo da história humana.
E amamos, baby, como se o universo acabasse de nascer só pra nós.

Nem a revolução francesa, nem a traição de Brutus, nem a megalomania de Napoleão, nem Salamina e Platéia, nem Alexandre o Grande, nem Aníbal e sua troupe de elefantes, nem Neanderthal e Kro-magnon, nada nada baby, vai resistir à bomba que derrotará a bomba nuclear: este simples compacto simples
que eu trouxe pra você: "She loves you". Gosta?

A música é daqueles quatro garotos que acabaram de atravessar a avenida e, nesta simples mudança do vermelho pro verde do sinaleiro, mudaram completamente a cara do mundo.
Bem, pode não ser verdade para eles mas é verdade pra nós, baby.
Aqui, bem aqui, no acanhado barzinho dos nossos mais de 40 anos de idade. Let it be, meu amor.

Meu ponto chegou. Vou ter que descer . E olha, não vai ser fácil!
Uma multidão se espreme no ônibus da São Paulo de agora.
E estão brabos, baby. Quem sabe foi até por isso que não viram os Beatles atravessando a avenida, feito duendes, magos, com seu jeitão de quem volta pra refazer um grande Magical Mistery Tour com o mundo inteiro.

Já pensou? Em vez deste tédio do almoço, em vez desta garoinha suja, em vez de todo mundo sisudo, um novo céu e uma nova terra, com garoas de legítima prata 90 e grandes sorrisos no rosto?

O mundo inteiro de mãos dadas, num grande palco de estrelas, cantando para o universo, para as galáxias e todos os ETS:
- "All you need is love! All you need is love! Love! Love! Love!"

E até os pombos do Parque Trianon viriam em bandos, carregando o velhinho mendigo de boné azul e levando ele pelo bico, pra acordar numa outra dimensão.
Longe da esmola. Da solidão. Do abandono.
Pra cantar com todos, a vocação do encontro que mora dentro de cada coração.
Numa Beatlemania tão divina, tão divertida, baby, que nunca mais dê vontade de parar!

Celso Luiz Marangoni é poeta, publicitário e artista plástico. Publicou, entre outros, os livros "Gare 33", "Realejo Enguiçado" e "Viajante & outros silêncios".
(1º prêmio nacional acumulado de poesia e pintura em 2005, na décima edição do "Prêmio Lília Pereira da Silva"). Deu recitais na USP, no Tuca, Teatro Taib, Club Homs, União Brasileira de Escritores, Palas Athena e circuito universitário em diversas cidades brasileiras.
Realizou 12 exposições de quadros. Seus trabalhos estão em coleções particulares do Brasil, Estados Unidos e Suécia. Seu quadro “Infinito” foi publicado na primeira página da revista “Astronomy” (2006).
Também ministra palestras sobre Criatividade para empresas, grupos e associações.
Email:
engenhodotexto@uol.com.br
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