domingo, 15 de novembro de 2015

Um enigma humano: a violência pela violência do Estado Islâmico


Leonardo Boff *
 

"O Estado Islâmico recusa qualquer diálogo e negociação. O caminho só possui uma via: a violência de matar ou de morrer. Esse fato é perturbador, pois coloca a questão do que é o ser humano e do que ele é capaz. Parece que todas as nossas utopias e sonhos de bondade se anulam," escreve Leonardo Boff, filósofo, teólogo e escritor.

O Estado Islâmico da Síria e do Iraque é uma das emergências políticas mais misteriosas e sinistras, talvez dos tempos históricos dos últimos séculos. Tivemos na história do Brasil, como nos relata o pesquisador Evaristo E. de Miranda (Quando o Amazonas corria para o Pacífico, Vozes 2007) genocídios inomináveis, “talvez um dos primeiros e maiores genocídios da história da Amazônia e da América do Sul”(p. 53): uma tribu antropófaga adveniente devorou todos sambaquieiros que viviam nas costas atlânticas do Brasil.

Com o Estado Islâmico está ocorrendo algo semelhante. É um movimento fundamentalista, surgido de várias tendências terroristas. Proclamou no 29 de junho de 2014 um califado, tentando remontar aos primórdios do surgimento do Islã com Maomé. O Estado Islâmico reivindica autoridade religiosa sobre todos os islâmicos do mundo inteiro e assim criar um mundo islâmico unificado que siga à risca à charia (leis islâmicas).

Não é o lugar aqui de detalhar a complexa formação do califado, mas apenas nos restringir ao que mais nos torna confusos, perplexos e escandalizados por usar a violência pela violência como marca identitária. Entre os muitos estudos sobre o fenômeno cabe destacar dois italianos que viveram de perto esta violência: Domenico Quirico (Il grande Califfato 2015) e Maurcio Molinari (Il Califfato del terrore, Rizzoli 2015).

Quirico narra que se trata de uma organização exclusivamente masculina, composta por gente, em geral, entre 15-30 anos. Ao aderir ao Califado apaga todo o passado e assume nova identidade: de levar a causa islâmica até a morte dada ou recebida. A vida pessoal e dos outros não possui nenhum valor. Traçam uma linha rígida entre os puros (a tendência radical islâmica deles) e os impuros (todos os demais, também de outras religiões com os cristãos, especialmente os armênios). Torturam, mutilam e matam sem qualquer escrúpulo. Ou se convertem ou morrem, geralmente degolados. Mulheres são sequestradas e usadas como escravas sexuais pelos combatentes que as passam entre si. O assassinato é louvado como um “ato dirigido para a purificação do mundo”.

Molinari conta que jovens iniciados por um vídeo sobre as decapitações, pedem logo para serem decapitadores. Parte dos jovens é recrutada nas periferias das cidades europeias. Não apenas pobres, mas até um laureado de Londres com boa situação financeira e outros do próprio mundo árabe. Parece que a sede de sangue clama por mais e mais sangue e pela morte fria e banal de crianças, idosos e de todos os que relutam em aderir ao islamismo.

Financiam-se com o sequestro de todos os bens das cidades conquistadas da Síria e do Iraque, mas especialmente do petróleo e gás dos poços arrebatados, propiciando-lhes um ganho, segundo analistas de energia, de cerca de três milhões de dólares/dia, geralmente vendidos a preços muito mais baixos nos mercados da Turquia.

O Estado Islâmico recusa qualquer diálogo e negociação. O caminho só possui uma via: a violência de matar ou de morrer.

Esse fato é perturbador, pois coloca a questão do que é o ser humano e do que ele é capaz. Parece que todas as nossas utopias e sonhos de bondade se anulam. Perguntamos em vão aos teóricos da agressividade humana, como Freud, Lorenz, Girard. As explicações nos soam insuficientes.

Para Freud, a agressividade é expressão da dramaticidade da vida humana, cujo motor é a luta renhida entre o princípio de vida (eros) e o princípio de morte (thánatos). Descarrega-se a tensão para fins de auto realização ou proteção. Para Freud, é impossível aos humanos controlar totalmente o princípio de morte. Por isso, sempre haverá violência na sociedade. Mas por leis, pela educação, pela religião e, de modo geral, pela cultura pode-se diminuir sua virulência e controlar seus efeitos perversos (cf. Para além do princípio do prazer, Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. 5).

Para Konrad Lorenz (1903-1989), a agressividade é um instinto como outros e destina-se a proteger a vida. Mas ela ganhou autonomia, porque a razão construiu a arma mediante a qual a pessoa ou o grupo potencializa sua força e assim pode se impor aos demais. Criou-se uma lógica própria da violência. A solução é encontrar substitutivos: voltar à razão dialogante, aos substitutivos, como o esporte, a democracia, o autodomínio crítico do próprio entusiasmo que leva à cegueira e, daí, à eliminação dos outros. Mas tais expedientes não valem para os membros do Califado.

No entanto, Lorenz reconhece que a violência mortífera somente desaparecerá quando se der aos homens, por outro modo, aquilo que era conquistado mediante a força bruta (cf. Das sogenannte Böse: Zur Naturgeschichte der Aggression. Viena 1964).

René Girard com seu “desejo mimético negativo” que leva à violência e à identificação permanente de “bodes expiatórios” pode se transformar em “desejo mimético positivo” quando ao invés de invejar e de se apoderar do objeto do outro, decidimos compartilhá-lo e desfrutá-lo juntos. Mas para ele a violência na história é tão predominante que lhe significa um mistério insondável que não sabe como decifrar. E nós também não.

Na história há tragédias, como viram bem gregos em seus teatros. Nem tudo é compreensível pela razão. Quando o mistério é grande demais, é melhor calar e olhar para o Alto, de onde, talvez nos venha alguma luz.

Publicado originalmente em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/548015-um-enigma-humano-a-violencia-pela-violencia-do-estado-islamico

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