Luís Costa Pinto *
Poucas vezes fora da excepcionalidade da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 a 1988 assistimos ao Congresso Nacional trabalhar tão intensamente como na semana passada. Raras vezes os parlamentares brasileiros impuseram às Mesas Diretoras das duas Casas Legislativas o ritmo frenético de fazê-las aprovar seis, sete medidas provisórias num único dia em que as comissões temáticas e especiais também funcionaram. Esta semana não será diferente. É provável que os presidentes da Câmara e do Senado, em meio a rol inédito de legislações mais e menos relevantes, aprovem até um novo rito de tramitação de medidas provisórias destinado a impor limites ao Poder Executivo na facilidade com que ocupantes do Palácio do Planalto acionam o dispositivo que deveria ser extraordinário. De quebra, dificultariam a subida de jabutis ao topo das MPs. Dá-se o nome de jabutis a artigos e temas estranhos ao assunto original das medidas, introduzidos por legisladores no curso da tramitação.
Poder não conhece vácuo. Se conhecesse, seu nome seria desordem. Em razão disso, a explicação para o furor legisferante por que passa a Capital da República desde que a divulgação das gravações de Michel Temer com Joesley Batista, dia 17 de maio, promoveu o sequestro da autoridade governamental tornando o chefe de governo refém de fatos que não domina: o poder real se deslocou, em Brasília, para os prédios do Congresso, do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Superior Eleitoral e da Procuradoria Geral da República.
Não há mais agenda de reformas “do governo”. Há reformas constitucionais que foram enviadas pela equipe de governo ao Parlamento, como a trabalhista e a da Previdência Social, que a essa altura já foram tão dramaticamente esquadrinhadas e reescritas que não são mais propriedade intelectual de ninguém na Esplanada nem no Palácio do Planalto. Além dessas duas, Câmara e Senado impuseram a Reforma Política e um arremedo de Reforma Tributária. Contra a vontade do Planalto, os presidentes da Câmara e do Senado abriram interlocução direta com governadores e renegociam dívidas estaduais. Esta semana os senadores devem iniciar discussão em torno de um novo modelo de ISS.
Quem selou a sorte do ex-ministro da Justiça, Osmar Serraglio, trocado pelo advogado Torquato Jardim, não foi nenhuma ideia inspiradora do chefe de governo. Ao menos dois parlamentares procuraram Temer entre a noite de sexta-feira, dia 26/5, e a manhã do domingo, dia 28/5, para exigir dele a demissão de Serraglio. O motivo: inapetência para o cargo e incompetência ante os subordinados. Esses mesmos conselheiros, contudo, coraram ao saber da surpreendente decisão de remover o ex-ministro da Justiça para o “ministério da Transparência”, nome pomposo dado à velha Corregedoria Geral da União que sempre funcionou a contento. Informados da troca, resignaram-se a fazer leve advertência de que daria marola. Está dando.
Encurralado pelas denúncias que se avolumam contra si e contra sua equipe, Michel Temer não tem muito tempo para cuidar dos assuntos de governo. A Reforma da Previdência, antes vendida como pedra de toque do redirecionamento da economia, saiu do controle do Executivo. É hoje, muito mais, uma agenda imposta pelo deputado Rodrigo Maia, presidente da Câmara, ao seu colegiado do que prioridade palaciana. A Reforma Política tem sido tema tratado com maior denodo pelo presidente do Senado, Eunício Oliveira, do que pelo demitido do ministério da Justiça – a quem cabia a condução dos debates iniciais sobre o tema.
Se ao Congresso tem caído bem o protagonismo das ações de governo real, ao Judiciário reserva-se o papel de ator central nos fatos que podem emparedar de vez a gestão de Temer – transformando-o, ou não, em nota ou verbete de enciclopédia de História.
A partir do dia 6 de junho o TSE será dono do cronômetro que demarcará o prazo desse governo. Já nos próximos dias o plenário do Supremo Tribunal Federal decide sobre a manutenção ou a interrupção dos inquéritos contra o chefe de governo. E o Ministério Público tem em mãos um arsenal completo de variados calibres para seguir bombardeando ou estancar o fogo contra o Planalto. Cavada a trincheira na aresta norte da Praça dos Três Poderes, os palacianos só se defendem. Não conseguem ter proatividade nem no flanco judicial, nem no flanco legislativo.
Nação peculiar que contempla um obelisco espetar a paisagem de sua maior metrópole, São Paulo, sabendo-o dedicado a uma derrota – a dos rebeldes constitucionalistas de 1932 –, caso único no mundo em que se ergue tal monumento para celebrar uma revolução perdida, o Brasil tratou de consignar novas bizarrices em sua biografia de Estado singular.
Já tivemos um imperador, Dom Pedro 2º, celebrado no New York Times, ao ser derrubado, como “um monarca democrata” e “o mais republicano dos chefes de Estado da América do Sul” (o Brasil era, como se sabe, a única monarquia do subcontinente). Agora, Osmar Serraglio, investigado na Operação Carne Fraca e gravado pela Polícia Federal que comandava, vira “ministro da Transparência” a fim de segurar no mandato parlamentar (e com o foro privilegiado) o deputado Rodrigo Rocha Loures, flagrado em corrida desabalada com mala contendo R$ 500 mil – depois devolvida à PF com apenas R$ 465 mil. Os fatos mantiveram Serraglio na equipe de governo: na lógica dos palacianos, demiti-lo seria um desastre não para o país, mas para a estratégia de defesa da intrépida trupe.
Se um governante já não expressa suas vontades por meio do governo, se a Nação caminha à revelia daquilo que emana do Palácio, urge concluir que inventamos o Presidencialismo sem presidente e sob ele navegamos à deriva.
* o autor é jornalista.
Publicado originalmente no Poder360: http://www.poder360.com.br/opiniao/opiniao/inventamos-o-presidencialismo-sem-presidente-e-sob-ele-navegamos-a-deriva/
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