Carlos Eduardo Florence *
O luminoso da Pensão Nossa Senhora das Boas Dádivas acabara de ser desmerecido. Ali, senhora respeitada de seus destinos e decisões, cafetina Merinha, pontual, desamuada, sem impertinências, ajoelhou-se respeitosa aos pés da Madalena Santa, protetora das moças carinhosas, agradeceu à vida tranquila que mais uma noite lhe dera. Cadinho, molambo em figura, amenizava as solidões nos limites dos seus tracejados aonde se enroscava aos pés da Catedral para beijar a melancolia.
O sino cadenciou mais uma agonia. Eram as meias horas entre várias solidões. A Praça da Matriz acolhia um resto de puta fumando, remoendo penúrias, bebendo esperanças e angústias. Dois cafetões, Cabedeu da Quinha e Ritílio Bocadura, o mais atrevido capoeirista, o outro municiado de navalha, que administravam sintonias das proteções às moças, discutiam dosagens de maconha com o traficante Giradinho Doponto. As malícias se desacomodavam entre o preço da erva e os coitos barganhados.
Um carro de polícia desconhecido, diferente dos normais guardas que exploravam todas as madrugadas o entorno da matriz, as meretrizes, traficantes, cafetões, capoeiristas, para colherem seus subornos, coitos ou drogas, parou para averiguar o que poderia usufruir. Ensaiaram os estranhos policiais as agressões e petulâncias de rotina, pedindo referências, documentos, motivos para o catador abandonado, conversando com seus aléns, protegido nos escuros das paredes das torres, ouvindo os embalos dos sinos.
Cadinho levantou os braços, silenciou, deixou de lado os desaforos menores, engoliu os maiores. Os guardas viram que não haveria dinheiro, maconha, interesses para serem extorquidos. Chutaram o cachorro, espantaram os pombos, cuspiram e pisaram em cima do Cigano Simião desencarnado há mais de século, por não aprenderem a vê-lo em alma ao lado do amigo Cadinho. Riscaram os pés com seus coturnos sórdidos sobre os silêncios, anotaram no bloco inútil as ocorrências, ligaram a sirene e foram des-apaziguar outros meandros.
Cadinho, desfeitou nos recalques e nas contrafeitas de analfabeto e retirante. Descobriu que não aprendera a chorar. Palmilhou um rasgo fundo, pois não sabia como des-sonhar seus pesadelos, para desviver nos desaforos.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado no https://carloseduardoflorence.blogspot.com.br/
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