quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Conto de memórias boazinhas e um alento gordo

Carlos Eduardo Florence *
E por assim como se deveriam bem tecer os desejos, sem dúvida, desejo, a maior ganância pedida aos aléns, repetiram se igualados os embalos dos cantos rimados para contar as estórias da menina meiga, Acaué Cangutá, nativa índia mimosa das nascentes do Cantiaparó Açu.

O vento então parou para ouvir o aroma macio e peralta dos sons adocicados em fá maior das primeiras estrelas espreguiçando vadias por trás das nuvens escorregando pelas brisas que Obolum Oró lançara ao acaso para criar melhor o mundo das coisas, dos espíritos, dos homens. E os imprevistos se deram desde então dos começos até o brotar do cair da noite depois que o pai carregou carinhoso a filha para os embalos de agarrar-se no sono em rede de cipó atada, de um lado, no silêncio e, do outro, na solidão, como tão bem se davam as coisas no canto fundo e quieto da oca grande.

Ali até o tempo era vadio escorrendo entre os segredos da mata fora, escura, onde moravam os medos, bichos bravos, as dúvidas e se deu da menina a procurar suas melancolias de criança nas veias da preguiça para chamar os sonhos. Sorriu para si mesma no destino de encontrar, sempre como eram tão iguais as suas noites, noites a se fazerem a ela nos gingados dos devaneios esquisitos, saboreando seus desejos camuflados, cuidadosamente, sob o rolo aconchegante de paina, com que a avó nhãmbiquara lhe ensinará a devanear, bem devagar. E se punha a menina a colher nas confusões das suas imaginações travessas, tropicando na algazarra muito grande da escuridão apagada nos buracos fundos do céu imenso, onde os deuses cozinhavam as ideias esquisitas para mandá-las embrulhadas em pensamentos irrequietos durante as noites para as cabeças criadeiras das gentes pequenas dos fundos das florestas como Acaué.

O primeiro desejo serelepe a sair do emaranhado macio das painas da avozinha Acaué Tiroga, puxando consigo os demais pedaços compridos das fantasias a cata dos olhos alegres da menina, não era ninguém menos do que o Kauiãm, sua maritaca dourada.


A maritaca entrava pelo imaginário no sumir do sol, justo com a brisa da noite, no cair do sereno e do sono. Bolinava a avezinha atrevida o silêncio, escondia o medo, subia pela ternura, mordiscava as cócegas das dobras das orelhas para deixar ouvir até muito longe o canto inteiro do barulho da solidão para os animais amansarem. Durante o dia a maritaca era verde, despia o dourado, subia pelos galhos, jamais pelas orelhas e se fazia muda e gritadeira, enquanto a mãe raspava a mandioca, o pai caçava e a avó ensinava a Acaué as tramas das ervas boas para colher, quebrar as ruins para morrerem, trilhar os caminhos das imaginações, escutar a marola do rio antes dele dobrar abaixo depois da curva onde se escondiam os perigos. E assim se punha ela a aprender a ver no fundão das lonjuras o grito triste do Boitatá, ouvir a beleza de Iemanjá, sentir o resfolegar do Caipora, respeitar os ruídos dos receios, os sinais dos coriscos trovoados e, como bem ensinava a avó querida, os rastros dos caminhos da seriedade para virar mulher lá na frente, quando, no talvez, fosse ela adulta e chata.

A passarinha dourada de Acaué, na sua noite de rede calada, desmilinguida em solfejos irrequietos e moleques, se punha sempre a brincar de sumiço e feitiço, antes de escapulir da magia que as painas e as ideias escondiam. Dava somente as vistas Kaiuãm desenrolando dos tortuosos meandros dos azuis das confusões pensadas da menina encantada nos seus mundos de sabores fantásticos maturados nos aléns. Nisto, Acaué, nos torvelinhos da maritaca atrevida, sumida, se agitava irrequieta, choramingava baixinho para o seu coração só, na cisma, e no embalar da manha de chamar as preguiças enroscadas para agadanhar o sono e não acordar as reprimendas ranzinzas dos adultos zanzando. Sabia que em não vindo a avezinha fugidia das fantasias, não se abririam os entremeados dos desfiles gostosos balanceando as fascinações dos desejos outros aconchegando afetivos para conseguir ela tecer piscando, mole-mole, os embalos do sono teimoso, com afago nas painas fofas e a imensidão sem fim da solidão do escuro.

Dos receios e das trevas, só depois de Kauiãm Dourada se apresentar formosa, rompendo em garbo, nos seus gingados de maritaca, pelo assovio calmo da brisa mascando as palmeiras caladas, trazendo o prazer do balanço ritmado na rede da menina ouvindo o grilo Saboinha trinando bem longe, lá no fundo do ermo vazio, de onde o infinito, cabisbaixado, se preparava para voltar e buscar a saudade, que se atrasara por teimosia. Os demais desejos iriam se aconchegando. Assim, também, o desejo amigo do sapo gordo de ancas largas, sorriso aberto, afeto amplo, gestos prudentes, voz pontuada e inteligente, contava a mesma estória de sempre. Estória dela menina, nhãmbiquara, que voava sobre as águas agitadas das corredeiras do Rio Cantiaparó Açu, desviando das árvores grandes, cortando a neblina da madrugada, escondendo-se entre as pedras altas. Ela, no correr das fantasias, cantando do alto para as flores se oferecerem abertas aos colibris ligeiros. Se davam as rimas no tempo certo do seu sono despencando vagaroso das estrelas, rompendo cuidadoso pelos trançados dos sapés dos forros, acomodando aconchegante entre os cipós e embiras das amarras. Assim era por se dar, nos abeirados das margens brancas das areias fofas do rio bonito de tão perigoso, onde as garças, paturis, os socós, jaçanãs, os guarás se espreguiçavam antes das cataduras dos peixes agitados. E ali a menina Acaué se esparramava, descida alegre dos voos libertos, se acomodava no balanço do devaneio tranquilo da piroga azul rompendo as fascinações das aguadas campeando no cicio da cigarra esperando a lua despontar para derrubar, mansa, os cachos de sonho que colhia sempre nas rodilhas de melancolia escondidas nos firmamentos.

Como sempre se dava desobediente, atrapalhado e irrequieto, foi adentrando pelos olhos piscando para encontrar seus caminhos, o sonho faceiro como as painas macias dos enrolados da avó e suave como aconchego. Trazia atado, o devaneio preguiçoso, todos os desejos irrequietos, alvoroçados, confusos, da menina. Despontava a imaginação pelo beiral de um correr de alegrias floridas, acompanhando a mariposa agitada, azul, cirandando entre os dentes compridos da jaguatirica lambendo o filhote recém-nascido, procurando já, afoito, os mamilos entumecidos da mãe parida. Também, sobre a vontade da índia criança mastigar um sapoti maduro, o sonho do desejo deixava galopar o macho atrás da gazela sumindo entre as nuvens dos espigões e levando nas costas bonitas as cantorias e algazarras das araras alvoroçadas rumo ao destino desconhecido de Obolum Oro, criador e protetor dos insondáveis.

O murmúrio chegou calado para fechar, carinhoso, os olhos, por uma noite inteira, de Acaué, que deixou a mão direita continuar ensinando às painas os caminhos dos desejos e a esquerda levou o dedo mais gordo para se esconder medroso na boca pequena, dos dentes brancos, da menina sempre. A rede ressonou silêncio e pediu à noite carinho.
  

* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado em http://carloseduardoflorence.blogspot.com/2019/07/conto-de-memorias-boazinhas-e-umalento.html


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