segunda-feira, 2 de novembro de 2020

A foice da lua no campo das estrelas 1

Evaristo de Miranda 2

Hoje celebra-se a memória de todos os falecidos, os finados. Eles chegaram ao fim do seu tempo. O dia é solene, consagrado à lembrança dos antepassados e de todos os mortos. Este feriado é amplamente celebrado em todo o mundo. Os feriados são dias consagrados à memória de algum evento, personalidade ou feito histórico. A consagração os faz sagrados, os coloca à parte. Não se trabalha. O país se consagra a meditar, a lembrar.

Para muitos, este feriado não lhes diz nada, não corresponde à sua perspectiva filosófica ou religiosa. Finados está além de qualquer religião. Quem profana esta data esquece seus ascendentes e antepassados. Perde a memória e, sem querer, profana a si mesmo. Que ascensão pode ter alguém na vida, quando não se lembra de seus ascendentes? Quem imagina-se só, começando em si mesmo, triunfante e vencedor, age como se fosse filho do nada. E os filhos do nada são sementes do caos.

O finar evoca o findar e o morrer. Os finados chegaram ao fim e foram ceifados no seu tempo. O feno é a erva ceifada e seca que serve de alimento aos animais em períodos difíceis de inverno ou seca. Na Bíblia, o homem é comparado com a erva do campo. Finar e fenar. Feno vem do grego phaíno: brilhar, aparecer. Epifania evoca manifestação, luz do alto que nos veio visitar. A reluzente lâmina da morte não apaga os finados, apenas os igualiza diante das leis da natureza.

A foice simboliza os ciclos das colheitas e da renovação. A colheita só se obtém cortando o caule. Esse cordão umbilical liga o fruto à dependência da terra alimentadora. A colheita é o grão condenado à morte para servir de alimento, sustentando a vida, ou para germinar como semente. A vida e os exemplos dos antepassados alimentam os viventes. São um feno de luz. Sinal da progressão temporal e individual, a foice da morte brilha na noite de nossas vidas. Essa lua crescente, nunca declina. Como diz o poeta árabe Ibn-al-Motazz: “a foice de ouro no campo das estrelas”.

No dia de finados é bom visitar cemitérios, limpar e ajeitar túmulos, acender uma vela na igreja ou em casa, pronunciar uma oração, *fazer um minuto de silêncio (pelo menos!) e meditar*. A ritualizar os mortos é terapêutico. A prática desses ritos profanos e sagrados dão outra perspectiva ao tempo. Existe um tempo para tudo.

As honras fúnebres variam entre as culturas. Sempre existem e deveriam ser cultivadas. Se uma cultura perde a capacidade de honrar seus mortos, já não sabe honrar os vivos. Honrar nobilita quem recebe e quem oferece. A eternidade começa aqui e agora. A vida não é uma ante-sala da morte. O passar dos anos anuncia o prometido a todos e para sempre: a possibilidade de evolução pessoal a cada ano, o reinício, a morte e o renascimento.

Os cristãos creem na ressurreição. A morte é sua Páscoa, sua passagem para Deus. Os Finados lembram: não se trata de viver somente a inevitável passagem do tempo, as idades e o envelhecimento. O tempo - quarta dimensão do humano - pode ser um tempo de consciência, um tempo de graça, iluminação e vida plena.

1 Agora e na Hora – Ritos de Passagem à Eternidade (Ed. Loyola)

2  o autor é doutor em ecologia, pesquisador da Embrapa

 

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