Carlos Eduardo Florence *
Certo sonido sexual impúbere, imagino azul ou da linha de Ogum, ousava, insisto, ainda em sustenido, atravessou contra a mão o subjetivo que vestia eu em compasso de sublimação e se dispôs, petulante, com sua irreverência, a irromper altivo pelos meus meandros afetivos. Surpreendeu-me desprevenido na sua forma contumaz, algoz, já plasmando confortavelmente em meu ego. Nunca sei se insinuava-se invadir pela alma pré-disposta ou pelo cerebelo, talvez através da consciência, supunha, aliás, pelo espírito, quiçá distorcendo o inconsciente, talvez, quem saberia, via mente ou materializar-se-ia em dia de gala e alcançaria pelos meandros dos apegos, sub-repticiamente, entranhando pelo olfato, olhar, amor, pela ânsia, usurpando algo como o além ou sorrateiramente pela porta dos fundos. Eu era, um éramos, completamente perdido.
Sei que transcendo sem recatos em tais momentos, mas explicito melhor, com muita calma, pois antecipo que, por neófito em rituais exotéricos ser, também não tenho a menor hipótese dos motos pelos quais tais se repetem. Ocorre, amiúde, em sendo sempre o primeiro introito às minhas divagações alienadas, às vezes festivas, persecutórias inclusas, este ribombar de ruído sexual que antecipa os porvires outros.
Neste confronto diário dos bêbados convencionais, que milito, sou, praticamente, o único melhor dotado em tal estágio avançado de insânia perspicaz, embora estejam outros se aprimorando com cores indefinidas ainda, mas promissoras. Por oportuno, registro, vejo de um ponto neutro entre o mar e minha meta uma gaivota revoar sinuosa para estimular a própria incongruência do eu acho ser existir. Ao se permitir bailar sobre o azul e as ondas, deixa o rastro do invisível sobre o inexplicável antes de esconder-se na minha memória. Sou eu que me faço ser esta presença de deixar a gaivota existir porque a deslumbro em seu esplendor e me apodero do mundo ou a gaivota destrói minhas megalomanias debochando do meu subjetivo?
Especularia o que Picasso afloraria deste transe cubista? Recolhi o som ameno do voo da gaivota para explorar corretamente em uma inutilidade ocasional posterior que o infinito pede amiúde. Assim sinto que sofro, logo existo, plagiando a metáfora. Quando confesso que desespero no acompanhar esta forma labiríntica do endoidecer sobre o próprio pensar, meu padrinho, Ogolunmalé Aru, prioriza-me um passe por Iemanjá e se encarna em seguida no seu Pai Cainhoatã, esvoaça primoroso pelos hipnóticos castigos dos atabaques e ganzás sagrados e me abandona ao léu. Eu me reconforto até o próximo desespero. Aché.
Enquanto o recebia, ruído contumaz, com outras sintonias pessoais, que me enlevavam alegres ou conflituosas à irrealidade deleitosa, pedi um copo de vinho, meia porta aberta ao subjetivo para dissimular a claustrofobia, mais uma fatia significativa de tempo com preguiça, suficientes e aos pontos de maturações para alimentarem o nada. Tudo, creio, oportuno, considerando as variantes mutáveis expressas e adequadas ao contexto de desvario que eu perseguia. O dia se fazia seguir acompanhando as malemolências e as constâncias das marés para obedecerem aos ditames das luas e dos videntes. Continuei sem saber o que era maré ou o que não era eu para apreciar saborear a maré. Atino calado, mas não escuto o silêncio perguntar se sou eu que semeio estes delírios para rebrotarem no meu absurdo ou o todo se veste de seu nada preferido, tão simples, para só deixar a brisa mansa se dar a lavar as águas das areias brancas e me ensinar o belo? A gaivota retornou melindrosa para revoar delicada sobre seu sumiço e me liberou a memória para outras demências. São estas poucas superposições que me encantam e jamais se explicam porque depois aflora a psicose.
Com estes antanhos demarcados, os demais aderentes, sonhos, fantasias, emoções, gaivotas, tristezas, dúvidas, marés seguiram aconchegando ao meu átrio, bebida farta, euforias e espontaneidades incontroláveis, como meus delírios preferem ao conclamar a entropia psicótica do irreconciliável. Confabulam entre si com metáforas sutis, difusas, persecutórias, bipolaridades que eu desfio para mim como se desejasse encontrar o amém ou o infinito.
É inacreditável, as insânias se interdependem, ajustam, confabulam, interpolam, sonegam, mas não explicam ao meu desespero. Abdico, cedo então ao evento e componho vivas aos convivas achegados pelos meandros dos imponderáveis, incontrolados que se assentam nas controvérsias da tábula rasa que vai sendo ocupada. Em transe existencial eterno sou eu jamais não sendo, nunca provenho, pois represento ao infinito os comandos dos conflitos que me subordinam. Sofro ou me preparo para o orgasmo?
Mesa suficientemente extensa para acomodar a tristeza na cabeceira oposta, ficando o ciúme, modesto, na lateral à direita, depois do perdão, mas antes da ironia. A perene aflição sexual acomodou-se, ansiosa, entremeio a atração e a censura impondo certa dicotomia existencial à angústia a ponto de esta exigir seu espaço ao lado da solidão e pretendendo envolver no abraço a depressão que ocupava lugar de honra no cenário. Éramos um eu indiscutível e soberbo no palco do teatro em absurdo representando as multiplicações dos eus infinitos que eu éramos sem ser. Até então tentei chorar um sorriso, mas a indecisão solicitou mais uma rodada de vinho.
Os algoritmos se colocaram em um bailado delicado deixando o azul fluir para a depressão já se estendendo mais acinzentada antes de enveredar pelas paredes escorregadias e sujas do meu cérebro. Silêncio, tanto que os devaneios e olhares fugiram pelas janelas para buscarem, nos desconhecidos das censuras inconscientes, as imaginações para serem servidas às fantasias lépidas entre os meandros irrequietos das ideias. As ondas foram comparsas nestas alegorias e deixei o horizonte cavalgar minhas fantasias. Sou o executor das tarefas e mensagens dos desejos, anseios e traumas sem ter sequer o prover das decisões, submisso sofro. Comandam-me, não comando jamais. Escuto a solidão da maré montante invejar a gaivota oscilar sobre o marulho das espumas nas pedras caladas para brincarem de dúvidas. Real ou existe algo além da demência a me acalantar? O vinho não é de todo mal.
Meus sonhos se transformaram em visões para estas se permitirem de mãos dadas com o medo, a vontade, saudade, a ânsia, sigilo, a premonição, masoquismo cirandarem eufóricos ora com a angústia, depois com a euforia, por fim com o arrependimento. Pasmo, a benção de meu padrinho caiu sobre a angústia e sem recatos procurou a nostalgia mais próxima para se bolinarem. Eram independentes e espontâneas as emoções, mas não me permitiam fruir suas intenções e procedimentos. Executava as determinações, exercia, competente, como me restava, para não entrar em metamorfose esquizofrênica. A porta da capela bateu, com o vento, por não escutar mais os meus anseios.
Acompanhava estes momentos irreconciliáveis de distúrbios desacomodados e jubilosos do meu interior mental, enquanto discutia os motivos descabidos com a paranoia mais afetiva sobre a frustração do último amor. Conversávamos entrelaçados, debruçados sobre a toalha de utopia disposta pelo meu delírio se fazendo estender do imponderável até às mudanças furta-cores que se permitiam entardecer encantando as metamorfoses e os grenás poentes. Fixo o copo translúcido para enxergar o aroma indefinido da nostalgia. Corriam estes coloridos em danças e metáforas dodecafônicas, esbeltas, efêmeras como o amor que se imagina eterno, brincando de rouba-montinho com a decepção e os meus tropeços de autoanálise.
Assim, abertamente, ao me emocionar alcoolizado, acredito-me já com toda fé que este meu raciocínio intempestivo, brilhante, babélico, é, além de correto, inútil, perfeito, incompleto, mas insinuante para o meu ego estéril, brilhante, egocêntrico. Percorro os patamares Junguianos na busca de captar nos lençóis freáticos das minhas fobias e preconceitos, camadas que ainda não haviam sido perfuradas para reformular estes paradoxos. Em vão, a gaivota envolvida em uma película de nada arrasta meu olhar pensante para uma ilha deserta em que gostaria de ser enterrado ou parido novamente. Soberbo, estacionou o ruído na adjacência frontal do meu inconsciente despreparado e imaturo, sem respeito às regras existenciais e, portanto, antes mesmo de embriagar-me ou encarnar algo apropriado à incongruência. Preparo-me para ouvir a implosão do nada que sempre me acalanta. Poderia ter-me recolhido em recato, mas um talvez se interpôs entre o pretérito e o desejo. Apavoro-me, pelo amor de... oh! Deus.
Do oposto, em uma latitude azul transversal, não mais do que dois sorrisos antes de uma memória ainda engatinhando, um colibri delicado, sensibilizou-se com minha tristeza em dúvida e sugou com primor meus delírios para escondê-los entre umas pétalas de fantasias. Sentei-me, após mudar, no outro canto, o esquerdo, da mesa, ao lado da solidão, pedindo outro copo de bebida. Aguardei meu paradoxo confabular com o desejo o que determinariam fazermos. O mar chamou ao sol para se recolherem e eu permiti. A gaivota não comentou o princípio da lei da aptidão ou do mais forte para a sobrevivência da espécie. Coisas do materialismo histórico que detesto.
Não poderia saber de mim. Sendo tal não percebi se haveria alguma simbologia envolvendo-me neste enigma da gaivota brincando de maré ao pôr do sol embora a concretude do delírio mantivesse suaves contornos cubistas. Premuni que jamais entenderia meus anseios enquanto não definisse se a gaivota estranha exibiria às minhas alienações antes de revoar para seus infinitos distantes levando meus distúrbios. Ocorreu-me se existiria ela realmente só para incrementar minhas controvérsias flutuando com as marés? O vinho não respondeu. Senti agradável este enlevo que não levava a nada, mas não contradizia a brisa suave a montante.
As sanhas macias das alucinações foram se ajustando pelos meandros e acalantos do pensar com tendência até a algum repouso. Pude sentir o delicioso sabor acre de que estava vivo sem saber para que? Veio novo copo de vinho. Mandei fechar a porta claustrofóbica para sentir como seria vestir o caixão que me destinaria ao nada.
Apreciei, afetuoso, o ruído sexual deixando o silêncio ensinar-me a morrer como se fosse quase para sempre. Adorei o aroma de uma memória antiga, conflitiva, mas de um amor a mais que se frustrara como outros na eterna indecisão que carreguei pelo sempre. Ao experimentar morrer me recebeu à porta dos devaneios uma tranquilidade que nunca existiu e me ensinou a chorar.
* o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos
Publicado em https://carloseduardoflorence.blogspot.com/2021/03/adendos-outras-minucias-impertinentes.html
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