segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Civil ou Militar?

Celso Luiz Marangoni *
Agora você vai saber como um menino, de apenas 10 anos, levou o grande Júlio Botelho para jogar no Palmeiras, em 1959.
Mas não foi só. Também teve nas mãos os passes de Luizinho do Corinthians, trouxe o Mazzola de volta para o Palestra Itália e, acredite, comprou até mesmo o passe do Pelé, antes de ele ir pra Copa da Suécia.
O nome do empresário? Pedrinho.
Nunca ouviu falar? Pois acredite: o que o Don King foi para o boxe, o Pedrinho foi para o futebol.
Ah! Falta ainda o nome do menino, eu sei. Então deixe-me falar um pouco mais do Pedrinho. O menino você descobre por si. Casa de porta e janela com o reboque velho quebrado no batente. Um eterno cheiro de vapor de ferro passando roupa e um vira-lata sempre à porta.
Difícil acreditar que ali nasceram as maiores e mais caras transações do futebol brasileiro.
Mas era preciso muito jeito pra falar com o Pedrinho. Na saída da escola, ficávamos bolando uma estratégia para que ele não desconfiasse das nossas intenções – como direi? – sub-reptícias. A desculpa mais comum era: “Caiu um botão da capa de lã de meu pai, o que o senhor tem aí pra substituir”?
E o Pedrinho perguntava:
− Civil ou militar?

Então, ainda se fazendo de desentendido, ele jogava sobre o tosco balcão de madeira uma profusão de botões usados, de todas as cores e tamanhos. Uns de osso legítimo, os “civis”. Outros, dourados, os “militares”. Uma festa para os olhos! E, principalmente, para a nossa imaginação.
Uau! Ali estavam eles: Didi, Garrincha, Pelé, Zito, Djalma Santos, os ídolos da nossa infância. E por um preço que era o décimo da nossa mesada! Ainda sobrava dinheiro para o circo de sábado, a roda-gigante do domingo e pro papel de seda dos balões. Depois, era surrupiar umas batatas-doces de algum quintal desatento e assar na fogueira pra discutir o assunto mais importante do nosso bairro: o campeonato de botões. Os times viajavam muito e de primeira classe: iam de casa em casa no Boeing de nossos bolsos, junto a pão com manteiga e estilingues.

Para desespero de nossas mães, arrastávamos as camas pro canto da parede e, súbito, o quarto se transformava num Maracanã lotado. E nossos craques estraçalhavam no gramado do assoalho! Que rodadas antológicas! A gente não só jogava (e brigava), como também irradiava as partidas. Com som de público e tudo. Certa vez uma vizinha perguntou, por cima do muro, à minha mãe, se na nossa casa alguém tinha asma. Era a gente, em uníssono, fazendo o som da torcida.

(Clique na foto para ampliar)

O goleiro Gilmar era uma caixa de fósforos dupla, toda enrolada em fita isolante preta devidamente recheada de chumbinhos. Imbatível.

Que tempos aqueles! Que falta faz às crianças de hoje saber brincar!

Mais que isso: ter pais que brinquem com elas. Sabe lá de quantos meninos o Pedrinho não foi pai e conselheiro? Muitos não tinham televisão.
Jogos, só pelo rádio. Assim, tinham que imaginar o jogo. E o sonho fazia parte de suas vidas.

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“Que tempos aqueles! 
Que falta faz às crianças de hoje saber brincar!
Mais que isso: ter pais que brinquem com elas.”
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Depois, crescemos, namoramos, fomos pela vida afora. E os estádios que tínhamos de encerar, calaram-se para sempre. Muitos e muitos anos depois, quando já algumas vaias ressoavam no gramado da minha vida, voltei um dia à cidade onde nasci. Era de tarde e fui caminhando, instintivamente, lá para os lados onde ficava o majestoso escritório do Pedrinho.
Uma ruína, quase irreconhecível, me esperava. Ao lado, um estacionamento e uma lousa fria, indicando os valores. E então, um outro frio, ainda mais gélido, tomou conta do meu coração. Meu Deus! Ela ainda estava lá! Velhinha e enferrujada, mas ainda lá! A placa!
Mal pude ler, com aquelas lágrimas quentes embaçando os meus olhos: “Alfaiataria Pedrinho – Civil ou Militar”.
Ventou e a plaquinha rangeu:
− Nhéc! Nhic!
Acho que tentou falar comigo.

Dos amiguinhos, nem sinal. Hoje são avôs. E nossos botões também sumiram. Devem ter ido para a terra aonde vão as meias quando somem.
Lá para onde, certamente, também já foi o Pedrinho: jogar botão com os anjos. Longe deste mundo, onde muitos ainda acham tempo para acionar outros botões: dos mísseis e das bombas. Pobre gente.
Faltou para eles um Pedrinho na infância.

* Celso L. Marangoni é poeta, pintor e publicitário.

Autor do livro Viajante & outros silêncios, 1º Prêmio Nacional de Poesia e Pintura, 10ª edição
do Prêmio Lilia Pereira da Silva.
Transcrito da revista "Família Cristã" edição de novembro/2011, mediante autorização de seu autor.
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