Mais uma vez o amigo Luís Amorim me manda de além-mar um texto irretocável e dramático sobre essa pandemia viral que nos atordoa, anunciando um genocídio programado. A crise é na saúde ou é do capitalismo?
Bérgamo ou a mortandade que o patronato não quis evitar
13 de abril de 2020
Viaturas
militares atravessam Bérgamo carregados com
caixões: levam para fora da cidade Créditos/ Ruptly |
«Há imagens que marcam uma época, que ficam gravadas no imaginário coletivo de um país. Aquela que os italianos não serão capazes de esquecer por muitos anos é a que os moradores de Bérgamo fotografaram das suas janelas na noite de 18 de Março. Setenta caminhões militares atravessaram a cidade num silêncio sepulcral, um atrás do outro, em marcha lenta como sinal de respeito: transportavam cadáveres. Levavam-nos para outras cidades, fora da Lombardia, porque o cemitério, a funerária, a igreja transformada em funerária de emergência e o crematório a funcionar 24 horas por dia já não eram suficientes. A imagem plasmava a magnitude da tragédia em curso na região de Itália mais afetada pelo coronavírus.»
É assim que começa o artigo publicado há três dias pela jornalista ítalo-catalã Alba Sidera, no portal ctxt.es, sobre a grande mortandade causada pelo novo coronavírus na província de Bérgamo, na região italiana da Lombardia, à qual pertence, sobre responsabilidades do patronato – que muito fez para manter as atividades – e do governo italiano – que escolheu um lado, e não foi o dos trabalhadores –, sobre a «mercantilização» do setor da saúde e sobre «a dor que se transforma em raiva» e exige saber a verdade. Isto, num tempo em que, consumada a «tragédia», todos sacodem a água do capote.
A epidemia na região de Bérgamo, a chamada Bergamasca, teve início oficial no dia 23 de Fevereiro. No entanto, os médicos de família – que estavam na mira do governo lombardo e do governo central italiano, no âmbito das políticas de desinvestimentos na saúde pública – afirmam que, desde o final de Dezembro, tinham atendido «muitíssimos casos de pneumonias anômalas».
«Os presidentes dos municípios mais atingidos pelo coronavírus em Val Seriana aguardavam por ordens para poderem decretar o fechamento destas localidades, que nunca chegaram.»
Dos dois casos oficialmente registrados a 23 de Fevereiro na província de Bérgamo passou-se, numa semana, para 220, quase todos em Val Seriana. Apesar disso, os municípios deste vale – nem sequer os mais atingidos, como Nembro e Alzano Lombardo – não foram declarados «zona vermelha». Já em Codogno, localidade lombarda onde a 21 de Fevereiro foi detectado o primeiro caso oficial de coronavírus, bastaram 50 casos diagnosticados para fechar a cidade e decretá-la «zona vermelha» [com o grau máximo de restrições].
A jornalista pergunta então por que motivo «não se fez o mesmo em Val Seriana» e encontra resposta no fato de, neste vale do rio Serio, entre os Alpes e Bérgamo, estar localizado um dos polos industriais mais importantes de Itália, e de a associação patronal da indústria ter pressionado todas as instituições para evitar fechar as suas fábricas e perder dinheiro.
Os prefeitos dos municípios mais atingidos pelo coronavírus no vale – Nembro e Alzano Lombardo – aguardavam por ordens para poderem decretar o fechamento destas localidades, que nunca chegaram. Em vez disso, receberam chamadas contínuas da parte dos empresários e dos donos das fábricas da região, muito preocupados com um eventual fechamento dos municípios e querendo evitar a todo o custo a paragem das suas atividades.
Confindustria lança campanha ou o negócio antes da vida
Já em situação de plena emergência – em cinco dias o número oficial de infectados subiu para 110 na região –, a Confindustria, associação patronal da indústria italiana, iniciou uma campanha nas redes com a etiqueta #YesWeWork. À imprensa, o presidente da Confindustria Lombardia, Marco Bonometti, disse que era preciso «baixar o tom, fazer com que a opinião pública entenda que a situação está a normalizar-se, que as pessoas podem voltar a viver como antes».
No mesmo dia, a Confindustria Bergamo lançou a sua própria campanha, destinada aos investidores estrangeiros, para convencê-los de que ali não se estava a passar nada e de que «nem a brincar» iriam fechar as portas. O slogan era inequívoco: «Bergamo non si ferma / Bergamo is running» [Bérgamo não para].
«Já em situação de plena emergência – em cinco dias o número oficial de infectados subiu para 110 na região –, a Confindustria, associação patronal da indústria italiana, iniciou uma campanha nas redes com a etiqueta #YesWeWork.»
Apenas cinco dias volvidos, eclodiu o enorme surto de infecções e mortes, que acabou por ser o mais importante em Itália e na Europa. Mas nem assim a campanha foi retirada ou se avançou com a hipótese de fechar as fábricas, para proteger os trabalhadores. A Confindustria Bergamo reúne cerca de 1.200 empresas, onde trabalham mais de 80 mil trabalhadores: expostos ao vírus, obrigados a ir trabalhar, muitos sem medidas adequadas – em fábricas superlotadas, sem distância de segurança ou material de proteção –, pondo-se a si mesmo e a todo o seu meio em risco.
Também o presidente da Câmara de Bérgamo, Giorgio Gori, do Partido Democrático, se juntou aos pedidos para «não fechar a cidade». No dia 1 de Março, convidou as pessoas a encher as lojas do centro, ainda com o slogan «Bergamo non si ferma» [Bérgamo não pára]. Mais tarde, confrontado com a evidência da catástrofe, reconheceu que tinha tomado medidas demasiado brandas, para não causar danos à atividade econômica das potentes empresas da região.
Governo decreta quarentenas a conta-gotas e toma partido
No dia 8 de Março o número oficial de infecções na Bergamasca tinha passado de 220 para 997 (numa semana). À tarde, falava-se que o governo de Giuseppe Conte ia isolar a Lombardia e a medida acabou por ser anunciada, já de madrugada, mas não foi nada daquilo por que ansiavam as terras de Val Seriana: nada de «zona vermelha», apenas «laranja»; ou seja, as entradas e saídas dos municípios eram sujeitas a restrições, mas toda a gente podia continuar a ir trabalhar.
Dois dias depois, o confinamento alargou-se a todo o país, mas nada mudou na região da Bergamasca, onde as infecções aumentavam e as suas fábricas continuavam a laborar a um ritmo imparável. Andrea Agazzi, secretário-geral da Federação dos Empregados Operários Metalúrgicos de Bérgamo (FIOM - Bérgamo), disse na RAI que «a Confindustria jogou todas as suas cartadas e o governo escolheu de que lado ia estar».
«A Confindustria [...] conseguiu não só atrasar a publicação do decreto, como acrescentar várias atividades à lista das consideradas "essenciais". Até a indústria de armamento e munições e os call centers passaram a ser "essenciais".»
Sem parar, continuou a aumentar o número de infecções e de mortes, sobretudo nas zonas industriais da Lombardia localizadas entre Bérgamo e Brescia. Um mês após o primeiro caso oficial de coronavírus em Itália, a 21 de Março, chegou-se a 800 mortos por dia. Os governadores das regiões da Lombardia e do Piemonte – outra zona fortemente industrializada – afirmaram então que a situação era insustentável e que era preciso parar a atividade produtiva.
Conte tinha-se oposto à medida até então mas, nessa noite, disse que «sim», que se iam encerrar «todas as atividades econômicas produtivas não essenciais». A Confindustria pôs-se de imediato em ação, pressionando o governo. E conseguiu não só atrasar a publicação do decreto, como acrescentar várias atividades à lista das consideradas «essenciais». Até a indústria de armamento e munições e os call centers passaram a ser «essenciais». Também conseguiu ver aprovada uma cláusula que permitia que qualquer empresa pudesse continuar aberta desde que declarasse que era «funcional» para uma determinada atividade econômica.
«Até 23 de Março, quando o número de casos de infecção pelo novo coronavírus era de 6.500 na região, as fábricas da Bergamasca estiveram praticamente todas abertas.»
Os sindicatos, unidos, ameaçaram fazer greve geral. Houve protestos e paralisações nas fábricas. Negociações com o governo permitiram que fossem retiradas da lista algumas das mais de 80 «atividades essenciais» aprovadas como resultado da pressão da Confindustria. A luta dos trabalhadores também levou a que deixasse de ser suficiente o «auto-certificado» de uma empresa para passar a ser considerada essencial.
Ainda assim, a legislação do governo é suficientemente ambígua para permitir a muitas fábricas continuar abertas. Até 23 de Março, quando o número de casos de infecção pelo novo coronavírus era de 6.500 na região, as fábricas da Bergamasca estiveram praticamente todas abertas. Uma semana depois, mesmo com a legislação aprovada no sentido de encerrar «todas as atividades produtivas não essenciais», havia 1.800 fábricas abertas e 8.670 infectados (números oficiais) na região.
Da dor surge a raiva e a organização para exigir esclarecimentos
Na província de Bérgamo, tal como no resto da região da Lombardia, a saúde privada tem muita força e fatura milhões de euros por ano. Na Bergamasca, concretamente, metade dos cuidados de saúde passa pelo setor privado, sendo que as duas clínicas mais importantes na região – com faturamento anual de 15 milhões de euros cada – pertencem ao grupo San Donato – cujo presidente é o ex-vice-primeiro-ministro italiano Angelino Alfano, um antigo delfim de Berlusconi – e ao grupo Humanitas, que é presidido por Gianfelice Rocca, também dono da empresa Tenaris, líder mundial no fabrico de tubos e serviços para a exploração e produção de petróleo e gás, com sede legal no Luxemburgo e que teimou em não fechar portas na Bergamasca, para proteger os seus 1.700 trabalhadores.
«Na Bergamasca, concretamente, metade dos cuidados de saúde passa pelo setor privado»
Só a 8 de Março, pela força de lei, a saúde privada na Bergamasca se pôs a serviço dos cidadãos nesta crise de Covid-19. Então, foi obrigada a arranjar espaço para os pacientes infectados com o novo coronavírus.
«Agora, face aos milhares de cadáveres e a uma população que começa a transformar a sua dor em raiva, todos sacodem a água do capote», como o governador da Lombardia, Attilio Fontana, da Liga Norte, que culpa o governo central.
«A verdade é que nenhuma autoridade esteve à altura, exceto os prefeitos das pequenas localidades, que foram os únicos que reconheceram – e denunciaram publicamente – as pressões dos industriais, que os assediavam com chamadas para tentar de todas as formas em evitar ou adiar o fechamento das fábricas», refere a peça.
Numa cidade e região ainda em choque, as pessoas começam a organizar-se para exigir o esclarecimento dos fatos e que «alguém assuma, pelo menos, a responsabilidade de ter permitido que os interesses econômicos se antepusessem à saúde – isto é, à vida – dos trabalhadores da Bergamasca». Muitos dos quais «são precários».
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