Ao conceder superpoderes à Presidência e transferir decisões para o Judiciário, parlamentares viraram judas de malhação.
É fato que durante algum tempo o presidencialismo de coalizão do Brasil fez o
Dida Sampaio/Estadão |
Mas é necessário reconhecer que, de uns tempos para cá, esse mesmo presidencialismo mudou de caráter e a relação ficou deficitária. Aliados de ocasião recebem seu quinhão de poder, mas já não garantem a execução de programas. As tais "maiorias" são incapazes de fazer reformas e pouco colaboram com os governos. Delas se espera, antes, que não atrapalhem, aprovem "alguma coisa", mas que, sobretudo, anulem a oposição e garantam tranquilidade na esfera parlamentar, evitando o constrangimento de CPIs e outros perrengues. Antes que se atribua responsabilidade exclusiva ao PT, é bom dizer que nos Estados governados pela oposição as Assembleias Legislativas têm, em regra, o mesmo padrão.
Culpa dos governos que não têm agenda, ou não têm agenda porque não acreditam na capacidade de suas coalizões cumprirem acordos sem impor novos custos, tornando o processo de reforma mais dispendioso que o mal que se procura curar? O fato é que há um vazio de projetos, planos, propostas; um irritante vazio de Política com o "P" maiúsculo. O Brasil chegou à perfeição ou houve uma rendição incondicional às impossibilidades colocadas pela pequena política? Estamos longe, muito longe, da perfeição.
Burocratas tocam o barco, esperando pelo final do expediente; acreditam em ordens. Já estadistas são visionários, enxergam adiante com olhos no futuro distante; trabalham com a persuasão, a todo o momento. Estão escassos no Brasil de hoje. A impressão é que a realidade dobrou espíritos ousados e a única providência possível é contornar os problemas em vez de resolvê-los; deixar que o longo prazo e a crise resolvam o que a timidez e os interesses imediatos não permitem no presente. Quem nasceu primeiro: o vazio de propostas ou a desconfiança dos governos de seus aliados? É possível que sejam gêmeos. O fato é que esvaziar a agenda parlamentar aliciando partidos e políticos tornou-se o mais comum.
Mansamente, o Legislativo se deixou cooptar, abriu mão de prerrogativas e concedeu superpoderes aos presidentes da República. Também transferiu ao Judiciário a responsabilidade de decidir questões que lhe caberiam. Fez de Dilma e de Joaquim Barbosa os heróis de cada uma das metades em que o País tem se dividido. Mas, também, transformou parlamentares num consenso negativo nacional: judas em sábado de aleluia. A safra de políticos é ruim - raros resistiriam a testes mínimos de qualidade. Isso faz com que se despreze a própria atividade. Sem plantar boas sementes de Política, por geração espontânea só crescerá erva daninha nesse pasto.
Partidos políticos deveriam, como diz o nome, representar partes do todo social; parlamentares negociariam interesses difusos, amalgamando a sociedade. O Brasil tem hoje 34 partidos; seria interessante se pudéssemos creditar essa expressiva quantidade à variedade de grupos e interesses reais em ação. Não há, entretanto, setores que se sintam realmente representados. O descolamento revela que o sistema assumiu uma lógica própria, funcionando, basicamente, para si mesmo. Os cargos e o poder que lhes cabem na divisão de recursos - escassos - retornam à sociedade apenas se, ocasionalmente, os interesses de partidos e políticos vierem a coincidir com interesses sociais mais amplos. A coincidência de interesses deixou de ser regra, é exceção.
Pelo ângulo estrito da real política que se faz, a crise entre o governo Dilma e sua base não surpreende. É o que tem sido, uma mesmice sem novidades. Então, não há momento melhor para garantir posições e recursos do que períodos pré-eleitorais; arriscar a reeleição de Dilma parece ser pressão suficiente para derrubar barreiras, nos Estados e no ministério. Assim, o PMDB e aliados acautelam-se para que a fonte de sua força não se esgote. Já o governo, apoiado no suposto favoritismo da presidente, busca sujeitar aliados incômodos que têm retirado do PT importantes nacos de poder - no Congresso Nacional, nos Estados e no ministério. Falta Política num grau elevado. E mesmo para a política que se tem, inexiste coordenação capaz de fazer a partilha. Não se sabe que a alcateia é controlada com sagacidade, não com rugidos de tigres desdentados? Enfim, não se trata de projeto, visões de mundo, conflitos ideológicos: a parada se resume ao cretinismo eleitoral a que a Política foi reduzida. Só isso.
* Carlos Melo é cientista político, professor da Insper e autor de "Collor - o ator e suas circunstâncias" (Novo Conceito).
Publicado em O Estado de São Paulo, 15 de março de 2014: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,consenso-negativo,1141231,0.htm
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