quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Transparência e sonhos



Daniel Strutenskey de Macedo

Transparência nas relações.
Honestidade pressupõe transparência. Se as pessoas não disserem o que pensam, a honestidade não é possível. Mas como dizer o que se pensa a pessoas que pensam de outro modo e correr o risco de ser mal interpretado, de ver versões defeituosas circularem sem controle, nos difamando? O medo de ser mal interpretado e prejudicado é um dos obstáculos à transparência. Outro, maior que este, segundo Julián Marías, é que a transparência, na sua essência, pede que nos dispamos e a maioria de nós mal consegue ver a si próprio, não se enfrenta, não é honesta nem consigo mesmo.

Julián Marías, espanhol, professor de filosofia e escritor, explica que a transparência é uma experiência radical e dada a algumas pessoas devido seu caráter recôndito, íntimo, oculto, e tem que ser recíproca. Diz que viver a transparência com outra pessoa é penetrar na sua intimidade e aceitá-la sem o temor de descobrir algo que não se queira compartilhar, e que há transparências parciais, trivialmente conhecidas como confiança. 

Rubem Alves, escritor e psicanalista, diz que os jornalistas não usam o pronome “eu” porque quem diz “eu” mostra a cara, e o “bom” jornalista não deixa que isto aconteça, que sua “única” missão é ser um espelho de cem olhos e que o bom espelho não se deixa ver. Quanto mais clara e distinta for a notícia, tanto mais invisíveis serão o jornalista e seu olho. Neste ponto, ele diz que foi atacado por uma doença oftálmica e que também atacou Jorge Luiz Borges, que ao final da vida fez esta declaração comovente: “um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo (jornalistas e escritores). Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitantes, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto”. Essa doença se chama poesia. O poeta sabe que a notícia revela sempre o rosto de quem a dá.

Faz tempo, sei que há um só tipo de gente capaz de falar de Deus, são os poetas. Digo Deus querendo me referir ao lugar da moradia da consciência que é inegociável.  Lugar que a gente não sabe onde fica, nem o que é, mas que a gente, sendo filho, sabe que as mães têm. Marías diz que toda vida autêntica é sempre sistema e refere-se a esse recanto da alma como o último centro e que a verdadeira transparência exige uma condição: a exclusão de toda traição a esse fundo insubornável (quem vai encarar?).

Juntando-se Rubem com Marías, vê-se que jornalismo não combina com poesia, e vice-versa. Não combina com transparência, mas com reflexão de espelho. Não combina com honestidade, mas com ilusão. Rubens até assume que não lê jornais, só passa os olhos pelas notícias: “preciso ter uma idéia não do que está acontecendo, mas do que é notícia”. O que está acontecendo e o que está sendo notícia não são a mesma coisa. Notícia vem de notar e o “notar” varia de corpo para corpo. Urubu não nota madressilva, beija-flor não nota carniça. “Jornal de Beija-flor é diferente de jornal de urubu”.

Não tive a intenção de ser coerente e consequente. Longe de mim tal defeito. Todavia, para concluir bem o tema, transmito a vocês, em primeira mão, a poesia da Bia Olympio, que foi minha assistente de edição na Editora Ática, sobrinha do famoso editor José Olympio. Discutimos o tema, eu passei um texto do Marías para que ela lesse e ela me brindou com estas pérolas, que editei. Obrigado Bia.

Naquele mundo as pessoas eram transparentes, nenhum gesto ficava subentendido, nenhum sorriso tinha dupla significação. As dores eram tão visíveis e terríveis que poucos chegavam perto uns dos outros. Ainda estava escuro e o padeiro já misturava a farinha com água. Tinha dormido mal. Sonhara que as pessoas eram opacas, não dava para distinguir a sinceridade da dissimulação. Acordara sobressaltado. Uma mulher entrou na confeitaria. Ela estava feliz e seus olhos encontram os dele. Ele sentiu a felicidade se alastrar dentro de seu eu ao mesmo tempo em que ela foi tomada por um temor paralisante. A felicidade dele já se desvanecia. O olhar dela lançava nele o pavor que dele havia partido: temor refletido e rebatido de volta para a sua origem e que fez eco na lembrança de seu sonho. Ele foi tomado de horror, sua face se contraiu, suas mãos apertaram a borda da mesa. Ela, paralisada, fechou os olhos e quis chorar.

Assustada, ela acordou! E lembrou-se de que no seu mundo a transparência era privilégio daqueles que podiam se encontrar. Apesar da solidão, sentiu-se reconfortada. Resolveu ir à confeitaria. Nela, seus olhos se encantaram com os olhos daquele que delicadamente, mas com firmeza, juntava farinha e água. Sentiu-se invadida por uma felicidade ímpar. O padeiro, surpreendido, sentiu-se despertado por um desejar-se-ser-descoberto e sorriu. Ela não sabia o que havia por trás daquele sorriso, mas acreditou que a ela também era permitido o privilégio de acreditar. 

O padeiro acordou não querendo se acordado: como seria bom viver num mundo em que a transparência não fosse privilégio, mas uma possibilidade sempre aberta. Saiu de casa mais cedo, rejuvenescido. Quanto estava misturando a água com a farinha, uma mulher entrou na confeitaria. A esperança que com ele despertara refratou-se até a superfície de seus olhos e ele sorriu. Ela, acostumada a interpretar sorrisos como dissimulações, sorriu apenas em retribuição. Ele, emudecido, sentiu que já não havia mais tempo. Ela acordou angustiada. Teve medo de descobrir que a esperança já não atravessava as camadas acastanhadas sobrepostas dentro dela. Quis fugir daquele mundo em que fosco é o tempo e, apressada, foi à confeitaria. Um homem misturava farinha com água. 

- Bom dia, disse ele gentilmente.

E o tempo atravessou os sonhos, alinhavou o mundo e dourou os pães."

Em tempo:
Os jornalistas podem até fazer poesias. Os poetas fazem sonhos e sabem que a notícia revela sempre o rosto de quem a dá. Já os marqueteiros têm outro tipo de loucura, reúnem o que os jornalistas noticiam e os poetas sonham, desenvolvem ideias, porque acreditam nelas, querem transformá-las em produtos.
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