Daniel Strutenskey de Macedo
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Transparência nas relações. |
Honestidade pressupõe
transparência. Se as pessoas não disserem o que pensam, a honestidade não é
possível. Mas como dizer o que se pensa a pessoas que pensam de outro modo e
correr o risco de ser mal interpretado, de ver versões defeituosas circularem sem
controle, nos difamando? O medo de ser mal interpretado e prejudicado é um dos
obstáculos à transparência. Outro, maior
que este, segundo Julián Marías, é que a transparência, na sua essência, pede
que nos dispamos e a maioria de nós mal consegue ver a si próprio, não se
enfrenta, não é honesta nem consigo mesmo.
Julián Marías, espanhol,
professor de filosofia e escritor, explica que a transparência é uma
experiência radical e dada a algumas pessoas devido seu caráter recôndito,
íntimo, oculto, e tem que ser recíproca. Diz que viver a transparência com
outra pessoa é penetrar na sua intimidade e aceitá-la sem o temor de descobrir
algo que não se queira compartilhar, e que há transparências parciais,
trivialmente conhecidas como confiança.
Rubem Alves, escritor e
psicanalista, diz que os jornalistas não usam o pronome “eu” porque quem diz
“eu” mostra a cara, e o “bom” jornalista não deixa que isto aconteça, que sua
“única” missão é ser um espelho de cem olhos e que o bom espelho não se deixa
ver. Quanto mais clara e distinta for a notícia, tanto mais invisíveis serão o
jornalista e seu olho. Neste ponto, ele diz que foi atacado por uma doença
oftálmica e que também atacou Jorge Luiz Borges, que ao final da vida fez
esta declaração comovente: “um homem se propõe a tarefa de esboçar o mundo
(jornalistas e escritores). Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de
reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de habitantes,
de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer,
descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto”.
Essa doença se chama poesia. O poeta sabe que a notícia revela sempre o rosto
de quem a dá.
Faz tempo, sei que há um só tipo
de gente capaz de falar de Deus, são os poetas. Digo Deus querendo me referir ao
lugar da moradia da consciência que é inegociável. Lugar que a gente não sabe onde fica, nem o
que é, mas que a gente, sendo filho, sabe que as mães têm. Marías diz que toda vida autêntica é sempre
sistema e refere-se a esse recanto da alma como o último centro e que a
verdadeira transparência exige uma condição: a exclusão de toda traição a esse
fundo insubornável (quem vai encarar?).
Juntando-se Rubem com
Marías, vê-se que jornalismo não combina com poesia, e vice-versa. Não combina
com transparência, mas com reflexão de espelho. Não combina com honestidade,
mas com ilusão. Rubens até assume que não lê jornais, só passa os olhos pelas
notícias: “preciso ter uma idéia não do que está acontecendo, mas do que é notícia”.
O que está acontecendo e o que está sendo notícia não são a mesma coisa.
Notícia vem de notar e o “notar” varia de corpo para corpo. Urubu não nota
madressilva, beija-flor não nota carniça. “Jornal de Beija-flor é diferente de
jornal de urubu”.
Não tive a intenção de ser
coerente e consequente. Longe de mim tal defeito. Todavia, para concluir bem o
tema, transmito a vocês, em primeira mão, a poesia da Bia Olympio, que foi
minha assistente de edição na Editora Ática, sobrinha do famoso editor José
Olympio. Discutimos o tema, eu passei um texto do Marías para que ela lesse e
ela me brindou com estas pérolas, que editei. Obrigado Bia.
“Naquele mundo as pessoas eram
transparentes, nenhum gesto ficava subentendido, nenhum sorriso tinha dupla
significação. As dores eram tão visíveis e terríveis que poucos chegavam perto
uns dos outros. Ainda estava escuro e o padeiro já misturava a farinha com
água. Tinha dormido mal. Sonhara que as pessoas eram opacas, não dava para
distinguir a sinceridade da dissimulação. Acordara sobressaltado. Uma mulher
entrou na confeitaria. Ela estava feliz e seus olhos encontram os dele. Ele
sentiu a felicidade se alastrar dentro de seu eu ao mesmo tempo em que ela foi
tomada por um temor paralisante. A felicidade dele já se desvanecia. O olhar
dela lançava nele o pavor que dele havia partido: temor refletido e rebatido de
volta para a sua origem e que fez eco na lembrança de seu sonho. Ele foi tomado
de horror, sua face se contraiu, suas mãos apertaram a borda da mesa. Ela, paralisada,
fechou os olhos e quis chorar.
Assustada, ela acordou! E
lembrou-se de que no seu mundo a transparência era privilégio daqueles que
podiam se encontrar. Apesar da solidão, sentiu-se reconfortada. Resolveu ir à
confeitaria. Nela, seus olhos se encantaram com os olhos daquele que
delicadamente, mas com firmeza, juntava farinha e água. Sentiu-se invadida por
uma felicidade ímpar. O padeiro, surpreendido, sentiu-se despertado por um desejar-se-ser-descoberto
e sorriu. Ela não sabia o que havia por trás daquele sorriso, mas acreditou que
a ela também era permitido o privilégio de acreditar.
O padeiro acordou não querendo se
acordado: como seria bom viver num mundo em que a transparência não fosse
privilégio, mas uma possibilidade sempre aberta. Saiu de casa mais cedo,
rejuvenescido. Quanto estava misturando a água com a farinha, uma mulher entrou
na confeitaria. A esperança que com ele despertara refratou-se até a superfície
de seus olhos e ele sorriu. Ela, acostumada a interpretar sorrisos como
dissimulações, sorriu apenas em retribuição. Ele, emudecido, sentiu que já não
havia mais tempo. Ela acordou angustiada. Teve medo de descobrir que a
esperança já não atravessava as camadas acastanhadas sobrepostas dentro dela.
Quis fugir daquele mundo em que fosco é o tempo e, apressada, foi à
confeitaria. Um homem misturava farinha com água.
- Bom dia, disse ele gentilmente.
E o tempo atravessou os sonhos,
alinhavou o mundo e dourou os pães."
Em tempo:
Os jornalistas podem até fazer
poesias. Os poetas fazem sonhos e sabem que a notícia revela sempre o rosto de
quem a dá. Já os marqueteiros têm outro tipo de loucura, reúnem o que os
jornalistas noticiam e os poetas sonham, desenvolvem ideias, porque acreditam
nelas, querem transformá-las em produtos.
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