A Operação Carne Fraca disse muito a respeito do que está ocorrendo no país, e não apenas com o Estado de Direito, ou o Ministério Público, o Judiciário, a Polícia e a mídia nacional.
Sem querer discutir a questão política por trás dessa e de outras operações - o que já fizemos em outras ocasiões - o que está ocorrendo no Brasil de hoje é que entramos em um perigoso e kafquiano território quântico.
Uma espécie de dimensão espaço-temporal na qual, como no caso do Paradoxo do Gato de Schrodinger, sem as referências - perdidas - da Constituição e da Lei, ninguém sabe se o animal fechado dentro da "caixa" da República está morto, vivo, ou "vivo-morto", ou como ele ficará se abrirmos a caixa para ver o que está acontecendo, ou melhor, o que ocorrerá no exato momento em que a abrirmos.
Em um estado pleno, vigente, indiscutível, de Direito, dificilmente uma operação como a Carne Fraca - ou mesmo a Lava Jato, em muitos de seus aspectos, poderiam ter ocorrido da forma como se deu.
O pecado original que nos conduziu até aqui foi aceitar mudar as regras do jogo para derrubar um governo, depois do estado de sítio estabelecido, paulatinamente, contra a governabilidade, a partir das "manifestações" contrárias à "Copa de 2014".
Trocamos o universo tridimensional - judiciário, executivo, legislativo - da física política conhecida, que dava sustentação à República, pelo princípio da incerteza - que Heisenberg me desculpe pelo paralelo com a sua teoria que envolve a medição dos elétrons - do verdadeiro pega pra capar que impera agora, em que a plutocracia - suas diferentes corporações - se digladia pelo poder e os holofotes, querendo substituir os eleitos no comando da Nação, e as grandes vítimas são a Liberdade, a Democracia, o país e o cidadão.
A culpa por esse estado de coisas começa com o equívoco - para responder à pressão - do governo anterior, de pretender dar ao Estado "autonomia" com relação ao poder político.
Ora, se o Estado, ou certas parcelas privilegiadas dele, pudessem se sustentar, moralmente, apenas com o direito à autonomia (como se vivessem em uma bolha de plástico esterilizada totalmente isolada do que ocorre à sua volta) não seria mais preciso partidos, candidatos, eleições, Poder Executivo, voto ou Congresso.
O Estado só existe quando submetido ao poder político, que o legitima.
Senão ele não é Estado, e sim imposição, uma impostura.
Já que a Democracia existe para que o povo mande na plutocracia, paga regiamente por ele, e não para que uma plutocracia com "autonomia", mas sem voto, e, no caso de hoje, sem limites, se sinta autorizada, como parece estar acreditando agora, a querer mandar no país, na Nação e na República.
A falta de autoridade do poder político sobre a plutocracia, o abandono do império da lei, levou-nos a uma situação em que, depois de se rasgar as roupas de baixo da Constituição, expondo-a a todo tipo de violação, tudo passa a valer, e, dentro da estrutura do Estado, cada um com um mínimo de autoridade faz o que quer, quando e como quiser.
Não existem mais fronteiras definidas entre os poderes, e, dentro dos poderes, não existe mais ordem, hierarquia, regras, liturgia, atribuições claras para os diferentes níveis e personagens que os compõem.
Em um país, sejamos comedidos, acéfalo, completamente desorganizado do ponto de vista institucional, não é de se estranhar que procuradores e juízes mandem recado e façam "veladas" ameaças, de elefantina sutileza, ao Congresso, querendo, isso sim, tolher a autonomia do Legislativo Federal, como está ocorrendo, agora, no caso da discussão e aprovação da Lei de Abuso de Autoridade.
Como não é de se estranhar que procuradores insultem publicamente ministros do Supremo.
Que corporações de funcionários - e até mesmo órgãos do Estado - lancem campanhas públicas, em busca de assinaturas de apoio, como estudantes vendiam "votos", no passado, para a Festa da Primavera.
Que essas "campanhas" deem origem - até a simbologia é a mesma - a partidos políticos feitos para apoiar categorias de funcionários públicos às quais está claramente vedada a atividade política.
Que juízes de primeira instância aprovem ou desaprovem, publicamente, a indicação de Ministros da Suprema Corte; ou peçam, como se tratassem de concorrentes do Big Brother Brasil, apoio popular, em suas próprias e auto bajuladoras páginas na internet.
Que candidatos a ministro tenham que prestar contas e juras a emissoras de tv para eventualmente assumir seu cargo.
Que pessoas sejam conduzidas coercitivamente sem terem sido intimadas previamente.
Que prisões temporárias sejam sucessivamente prorrogadas por meses e anos, com o intuito de pressionar detidos, até que eles digam o que se quer.
Que empresas sejam ameaçadas para fazer o mesmo, admitindo todo um arcabouço mistificante e mendaz, sob pena de não poder mais trabalhar, e que, mesmo assim, continuem alijadas de crédito e do mercado governamental, porque CGU, AGU, MP, TCU não se entendem - e não apenas no caso dos "acordos" de leniência - na espetaculosa geleia geral em que se transformou o estado nacional.
Que ministros do Supremo sejam insultados da forma mais baixa na internet e redes sociais sem nenhuma reação.
Que existam sujeitos que se auto intitulam pré-candidatos à presidência da República, em plena campanha há anos, dentro e fora da internet, sem ser praticamente incomodados pela Justiça Eleitoral.
A sensação de falta de controle é tão grande, que uma multinacional estrangeira - sem nenhuma contestação de algum partido político, de um cidadão, ou do CONAR - coloca no ar uma campanha de lançamento de carro, de teor descaradamente político, com o tema - você na direção da mudança (que mudança? A quem interessa a mudança que aí está?) traduzindo, por meio de um automóvel de mais de 80.000 reais, o sonho de consumo e a conquista do país por uma suposta classe "média" conservadora, "vitoriosa", supostamente ascendente.
Quando a realidade é a da quebra - da engenharia à indústria de alimentos, agora - de centenas de grandes, médias e pequenas empresas, de milhares de acionistas, investidores - na bolsa e fora dela - fornecedores, vendedores, distribuidores, exportadores, e de centenas de milhares de trabalhadores que foram para o olho da rua devido ao caos político-institucional imperante e ao terror imposto ao setor produtivo, por funcionários públicos que não têm a menor ideia do que estão fazendo ou da repercussão econômica, política e social de suas ações.
Este é um tempo em que "investiga-se", rasteiramente, a torto e a direito, sem justificativa nenhuma, ou com base em ilações pontuais, insustentáveis, fortuitas, normalmente colocando sob escuta - já não há mais o menor controle sobre prazos, renovam-se, ad aeternum, as autorizações judiciais - por anos ou meses, diferentes setores da economia ou da vida nacional.
O que começou como uma manobra político-jurídica, dirigida a derrubar o governo anterior, em um impulso inercial que ainda continua, transformou-se, agora, em uma desatada fogueira das vaidades em que os setores encarregados de um novo tipo de repressão "giorgio-armaniana" competem entre si para mostrar quem manda mais, ou quem está fazendo mais em uma suposta "guerra contra a corrupção" que agride a Constituição, destrói a economia e sitia o que sobrou - depois do "impeachment" - de legitimidade no poder político.
Os alvos são aqueles segmentos pelos quais se cultiva antipatia ideológica, que continuam na mira, e, agora, aqueles ligados a temas que são passíveis de ter maior poder de repercussão junto à opinião pública - como a saúde ou alimentação, por exemplo - que são monitorados até que alguém diga, ao telefone, algo capaz de justificar uma "operação" de grandes proporções.
Então, o Ministério Público pede, e os juízes autorizam, muitas vezes apenas com base nessas interceptações, novas e mais amplas quebras de sigilo nas comunicações, prisões preventivas, conduções coercitivas, mandados de busca e apreensão.
Invade-se, apreende-se, prende-se, se conduz, com estardalhaço e muitas vezes sem provas, mantendo-se o "material apreendido" sob guarda da justiça, durante meses, anos, mesmo que seja apenas o tablet de uma criança.
Imediatamente, a mídia - ou a maior parte dela - reverberará, então, em gongos colossais, a versão do "sistema", sem checar também absolutamente nada, porque não o faz mais profissionalmente, mas automaticamente, ideologicamente, ininterruptamente, regurgitando, como um pinguim, o que recebe dos outros, sem digerir o que lhe passam terceiros, por meio de "notas" e vazamentos, em um jogo sujo e permanente de descarada manipulação.
Isso, sem dignar-se a perguntar a si mesma se quem fala de papelão e plástico pode estar se referindo a embalagem, ou sequer entrar no Google para ver que ácido ascórbico não é um tremendo veneno cancerígeno, mas um simples e corriqueiro tipo de vitamina C.
Se consultada, não há porque se preocupar.
Pressionada e seduzida pelo "clamor" das ruas - tão superestimado quanto ilusório - e pela narrativa preponderante vigente, a "justiça" estará quase sempre ao lado desse processo, desse novo estado de coisas, dessa estranha jurisprudência, dessa inédita situação - enquanto presos se decapitam nas prisões e tribunais inferiores absolvem, regularmente, agentes públicos filmados atirando em indivíduos desarmados ou jogando outros de telhados, por exemplo.
Tudo que for do interesse dessa "campanha", desse discurso único, será repetido, exagerado, multiplicado, à exaustão, em sites, jornais, portais e blogs.
Não apenas naqueles criados especialmente para divulgar mentiras, sem reação das autoridades - a ponto de publicar que uma pessoa morta foi vista viva em outro país, para jogar a população contra uma determinada liderança ou partido político - mas também nas redes sociais e nos comentários dos portais, por uma multidão de trolls, que, algumas vezes, primam pela ignorância, mas na maioria delas, são constituídos pelo ódio, pelo preconceito, pela estupidez, pela imbecilidade, sem contestação.
E assim, chega-se à fórmula mágica por meio da qual passamos a viver em um país dominado, de alto a baixo, pela mentira e a hipocrisia, que marcha, a passos firmes, coordenados, para um governo quase que certamente fascista, a partir do final do ano que vem.
Não é possível continuar reduzindo os problemas da Nação à corrupção, distraindo a população de outras gravíssimas questões, como os juros e a sonegação, nem podemos permitir que se percam de vista os parâmetros que regem o contrato social maior da Democracia, sob pena de que se perca a governabilidade e o controle do país.
Os graves erros cometidos pelo PT e pela oposição ao PT nos últimos anos, vide "O PT, O PSDB, e a arte de cevar os urubus", nos meteram em uma camisa de sete varas.
Em um jogo de matrioshkas - as bonequinhas russas de madeira pintada que guardam, dentro, outras, menores e aparentemente iguais - em que cada novo golpe, ou tentativa de golpe, esconde, em uma sucessão de pequenos kinder - ovos envenenados, uma "surpresinha" cada vez pior.
Sabemos, como no caso do gato, do martelo e do frasco de veneno do experimento mental de Schrodinger, a que nos referimos antes, que, dentro da primeira matrioshka, a matrioshka do "impeachment" contra Dilma, no ano passado, existem pelo menos mais duas bonequinhas, que dominarão, nos próximos meses e anos, se nada for feito para impedi-lo, o país e a vida política nacional.
Uma delas é o avanço permanente, contínuo, incontestável, do Estado de Exceção, com a conquista da República - com a desculpa de uma "autonomia" e de uma "independência" surreais (vide aí novamente a importância da aprovação da lei de Abuso de Autoridade) - por parte de uma plutocracia que não deveria ter, porque não tem voto, nenhum poder político.
A outra tem a ver com dois pré-candidatos - um deles, ainda eventual - ególatras e autoritários, os dois extremamente ligados a essa parcela da funcionalismo público preconceituosa, arrogante e hipócrita.
As duas maiores lideranças conservadoras do país, hoje, que, independente de só um deles sair candidato, inevitavelmente se apoiarão em um segundo turno contra Lula.
Que ninguém se iluda com o baixo comparecimento nas últimas manifestações "coxistas".
Quem quiser saber como anda o estado da extrema direita, no panorama geral do "Estado de Direita" nacional, que entre nas páginas na internet e em suas centenas de canais no youtube, e consulte o número de curtidas, adesões, assinaturas e comentários, para ter ideia da enorme dimensão que conquistou nos últimos anos no contexto da sociedade brasileira.
Esse quadro, cada vez mais complexo e desafiador, nos leva a perguntas difíceis de serem feitas e respondidas, mas que não podem ser adiadas, historicamente, por quem estiver minimamente preocupado com a sobrevivência da democracia no Brasil:
Qual das duas matrioshkas - a plutocrática ou a fascista - se consolidará primeiro?
Até que ponto elas trabalharão, intimamente, nos próximos meses, e, principalmente, consolidando esse absurdo estado de coisas, ou sabotando um eventual governo de esquerda, a partir da posse de um novo presidente, em janeiro de 2019?
Se Lula for candidato, até que ponto se poderá estruturar e alcançar uma contundente vitória fascista, por meio de uma ampla aliança no segundo turno - de todos, do "centro" fisiológico à extrema direita - contra ele?
Ou melhor, no ano que vem, se Lula for candidato, com quem ficarão os outros concorrentes que não forem para o segundo turno?
Contra ou a favor do fascismo que ameaça se assenhorear do país?
* o autor é jornalista.
Publicado originalmente no http://www.maurosantayana.com/2017/04/o-gato-de-schrodinger-e-as-matrioshkas.html
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