por Marcelo Rubens Paiva
Sachê
Você sabe muito bem do que estou falando. Onde estão aqueles
recipientes com mostarda e ketchup com que estávamos habituados, e aprendemos a
espremer antes de escrever? E o saleiro, o açucareiro, a maionese no pratinho,
com uma espátula apropriada? É mais raro encontrá-los do que guardanapos de
linho. A Vigilância Sanitária, o lucro insano das corporações e o capitalismo
selvagem nos obrigam a conviver com desagradáveis e minúsculos sacos plásticos
não biodegradáveis que, dizem, contêm o condimento necessário para a nossa
refeição. Como abrir? Com unhas? Dentes? Dentadas e unhadas? Imaginam que
andamos com canivete suíço no bolso? Como abrir sem escorrer a metade do
condimento? Como abrir sem espalhar pela mesa ou pelo colo ou, pior, espirrar
no rosto do garçom, um saco que não fora planejado para ser aberto, mas para
apenas armazenar uma porção que alguém arbitrariamente julgou a necessária.
Bem, minhas fritas precisam de dezenas daqueles saquinhos. E tiveram a cara de
pau de inventar sachê com azeite, vinagre e até shoyu. Queria que o inventor
dessa barbaridade almoçasse numa cantina tradiça com a minha família italiana e
tentasse temperar a salada, entre as polêmicas e discussões de sempre de
domingo. Sem usar os dentes.
Protocolo de Atendimento
Outra aberração da humanidade. Já tive quatro protocolos de
atendimento numa reclamação para o SAC de uma telefônica num telefonema de 30
minutos. Média: um protocolo a cada sete minutos e meio. No quarto, me
perguntei o que foi feito com o coitado do primeiro, perdido, esquecido
solitário no buraco negro que eles nomearam "sistema". E se
precisamos de quatro, por que nos soletram três antes. Nossa vingança é quando
fingimos que anotamos o protocolo de atendimento. "Senhor, por favor,
anotar o protocolo de atendimento." Claro, querida, pode falar, estou
anotando no meu álbum de protocolos de atendimento, que coleciono desde quando
inventaram o protocolo de atendimento, meses depois de inventarem o
atendimento. E repetimos em voz alta um número infindável, enquanto checamos
e-mails, postagens nas redes sociais, confirmamos presença em eventos em que
não daremos as caras... Se tivessem a mesma eficiência nos atendimentos que no
exercício de dar protocolos de atendimento, o mundo seria com bem menos
protocolos. E os consumidores ligariam bem menos para o atendimento.
Controle Remoto
Foi uma bela invenção. Que piorou a saúde da humanidade,
aumentou o sedentarismo e nos deixou mais atordoados. Invenção que, com o tempo
e o avanço tecnológico, piorou, como o relógio digital que está até em
eletrodomésticos de linha branca, piscando teimosamente no 00:00, já que não
sabemos programá-lo. Tá. Não bastam os botões de ligar, desligar, volume e
canal. Existem dezenas deles, com números que não são parte de uma calculadora
e símbolos que não fazem sentido, indicações e termos que só conseguem ser
lidos com a ajuda de um microscópio. O controle da minha TV, comprada no
Brasil, tem as opções power, source, ch, pre-ch, mute, ch.list, w.link, tools,
return, info, exit, cc, mts, p.mode, e.mode, p.size, fav/ch, números e
flechas... E, claro, um enter que, cuidado, se você apertar, a TV não
funcionará por sete dias, até seu sobrinho geek fazer uma visita. Como se não
bastasse, precisamos de três deles, às vezes mais, para assistir àquele filminho
água com açúcar com a família. E sincronizar operações, como abaixar o volume
da TV, aumentar o do Blu-Ray e mudar para modo HDTM3. Muitas vezes, quando
acertamos e, milagre, o volume está OK e a legenda sincronizada, parte da
família ronca ao lado. Mais fácil pilotar um caça sueco. Quer uma dica quando
der pau? Uso aqui em casa: tira da tomada, conta até 15 e coloca novamente.
Geralmente dá certo.
Renovação do Passaporte
Na Europa é de 15 em 15 anos. Nos EUA, de dez em dez. No
Brasil, de cinco em cinco anos. Gênio. E lá vamos nós, com fotos, DARFs pagas,
digitais, enfrentar filas para pegar senhas que nos levam a outras filas. E
rezarmos para o sistema, aquele labirinto obscuro de informações, o
entorpecente do burocrata descontente, não cair. O que costuma acontecer
justamente nas vésperas das férias. Quando a categoria não entra em operação
tartaruga ou greve. Por que não uma renovação de 20 em 20 anos? Aí, sim, os
policiais federais poderiam trocar o cabo de um carimbo pelo de um revólver e
ocupar o tempo com operações contra o crime organizado. Sem se preocuparem em
organizar filas de turistas, sacoleiros, crianças ansiosas pela Disney, gente
do bem sem antecedentes criminais.
Insulfilm
Serve para ocultar aquele barbeiro que nos fecha ou buzina
sem parar. Protegido pelo anonimato, nos intimida. Caso contrário, xingaríamos
quatro gerações da sua família. Se tivéssemos certeza de que dentro daquele
carro popular com insulfilm não está a seleção brasileira de jiu-jítsu. O
insulfilm aumenta a anarquia no trânsito. Incentiva a má-educação, a
imprudência e o hábito tão cordialmente brasileiro de "não dar
passagem". Tenho certeza de que, por trás daquele vidro escuro, está um
fracote que desconta seu complexo de inferioridade no trânsito. Caso contrário,
por que precisaria de um insulfilm? Pode apostar: no dia em que o proibirem, o
buzinaço em todas as esquinas diminuirá.
Radiador
Aquilo que sempre esquecemos de checar se está completo.
Como uma máquina tão evoluída, com computador de bordo, injeção eletrônica,
radar traseiro, câmeras, que faz a baliza sozinha, GPS, MP3, freios ABS,
airbag, precisa ser resfriada por um punhado de água engradada? A mesma água
que esfriou as engrenagens de catapultas romanas e apaga as churrasqueiras do
tiozinho do churrasco. Engradado que, a cada três anos, fura, e nos leva à
loucura, aquecendo a máquina e nos deixando na mão e a pé. Tem mais computador
num carro hoje em dia do que na Apolo 11, que levou o homem à Lua. Mas se ele
aquecer... Houston, we have a big problem.
Publicado em O Estado de S.Paulo, em 28/12/2013: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,aberracoes-da-humanidade-,1113058,0.htm
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