Poderia começar pelo azul impregnando a solidão, já não coubesse ai um paradoxo que arrastava com sua preguiça um sol bocejando na madrugada ainda fria, ou pelo gato lerdo sem saber se a torneira pingava por falta de imaginação ou era histérica. Talvez tenha sido, só para lembrar, por derradeiro, desnecessário mencionar, pois o sacristão perdera outra vez a hora, sem badalar os primeiros repiques chamativos das começantes preces acordantes, no resguardo da sua mulher ninfomaníaca o trair com o padeiro assim que ganhasse a calçada.
Em Jarabendi das Catambas o vento era preguiçoso igualado às macambiras enrugando nos cerrados, quando todos se levantavam, até as sanfonas se calarem extenuadas depois das noites findas, pois nada mudava para atravessar o dia inteiro, assemelhados de repetidos sempre, sem gracejos como cada um se acostumou a desviver sem motivos. Todas estas formas não tinham conexão com as redondilhas dos verbos que os poetas gostavam de elucubrar, mas que não distribuíam depois que as portas se fechavam ao esconderem o silêncio, como garantia Sá Barnécia, que se arrastava ali perto dos cem.
Mas se deu, apesar de praxe não ser, pois naquele outono remoto ao que constou sacramentado, dos cavalos acordarem agitados, do galo cantar em sustenido e a Dalva chegar mais cedo e com lágrimas. Verdade. Tudo se perfumou no silêncio, pois um sonho raquítico vindo arrastado pelos provérbios e pedras, que caíra descuidado na corredeira do Córrego da Mulata desde o Boqueirão da Serra, escapou das águas, assustado, em frente à matriz e foi subindo escondido pelas ruas desengonçadas de Jarabendi com intenção de achar seus caminhos de volta. Mas a viela de gente acomodada se extroverteu nas alegrias e se encantou com as fantasias que o sonho miúdo foi desfazendo ao caminhar. O sonho inveterado de coisas simples, que encantava, era azul.
Os meninos seguiram o sonho pedindo-lhe o canivete novo e vidro quebrado maior no banheiro das meninas. As moças da escola normal fantasiaram de volta o sorriso bonito do professor de história, que havia sido transferido para Surimpeti. O prefeito projetou transformar o Córrego da Mulata no Estreito de Gibraltar, receber um diapasão em lá maior sem fronteiras até aonde as montanhas escondessem, enrodilhar um vento forte para que as fragatas pudessem achar os destinos e os turistas viessem engrandecer as tradições de Jarabendi. Coisas simples.
O sonho foi, sem maiores preconceitos, longe de deboche, se contorcendo para ir enfeitando os meandros dos paradoxos e das dúvidas, passou pelo matriz para levar embora os pecados usados e retornar com um punhado de desejos novos. Atravessou o Beco dos Velhacos e deixou na Floricultura da Bezinha um ramalhete de orgasmos sem qualquer uso para ser oferecido graciosamente a quem comprasse rosas vermelhas. No fim da tarde o sonho assumiu seu destino, mandou os namorados para o jardim, abriu o cinema para os fãs se encantarem com seus ídolos, obrigou o pipoqueiro a levar seu carrinho para a praça, determinou que a hora da Ave Maria se compusesse de melancolia e mandou o grená se recolher ao poente para as solidões sonharem. O sonho era assim, difícil era interpretá-lo, pois todos queriam grandezas.
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o autor é economista, blogueiro, escrevinhador, e diretor-executivo
da AMA – Associação dos Misturadores de Adubos.
Publicado no https://carloseduardoflorence.blogspot.com.br/
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